John Cranko uniu musas em Legend

Pouco antes de sua morte, em 1973, John Cranko vivenciou a glória com sua companhia, o Ballet de Sttugart, com uma turnê nos Estados Unidos e União Soviética onde foram aclamados. Com sua musa, Márcia Haydée, ao lado do estonteante Richard Cragun, o coreógrafo apresentou duas de suas obras mais famosas: Eugene Onegin e A Megera Domada. E dessas turnês nasceu uma pequena pérola eternizada no filme Momento de Decisão (The Turning Point): o pas-de-deux Legend.

A beleza do pequeno pedaço coreogáfico está tanto no palco como na inspiração que o fez surgir porque une o amor de um gênio – John Cranko – por duas lendas da dança clássica: Galina Ulanova e Marcia Haydée.

Galina Ulanova foi uma das maiores bailarinas da história da dança, uma lenda em vida e um ícone extremamente popular ao redor do mundo. Ela se aposentou dos palcos aos 50 anos, quase uma década antes da turnê do Stuttgart, que ela presenciou e apreciou quando se apresentaram em Moscou.

A apresentação da companhia alemã por uma União Soviética fechada e no auge da Guerra Fria foi histórica. Quem testemunhou, como o bailarino Steven Wistrich, que era membro do Stuttgart Ballet na época, foi inesquecível. O exigente público que lotou o teatro Bolshoi para ver a companhia, aplaudiu A Megera Domada por cerca de 20 minutos sem parar. Não foi diferente com a prudção de Eugene Onegin, uma história russa e que tinha Marcia e Ricky nos papéis principais.

“Eles são amantes do balé muito sérios em Moscou, e o público enlouqueceu, exigindo bis após bis, aplaudindo em uníssono”, disse Wistrich em entrevista há alguns anos. “Por fim, a orquestra foi embora. Mas o público continuou batendo palmas, exigindo mais. Então o Sr. Cragun e a Sra. Haydée fizeram outra reverência e deram a eles o que queriam. Com as luzes da casa acesas e o público de pé, eles repetiram um pas de deux inteiro. Em completo silêncio.”

Uau.

E nos bastidores, ao conhecer Galina Ulanova, Richard foi presenteado por ela com uma túnica que usou em Romeu e Julieta, pra quem ele também presenteou à Marcia, sua esposa na época e parceira até o final da carreira dos dois. Desse pequeno momento, Cranko vislumbrou o que veio a ser Legende, que estreou em 1972 e que é descrito como puramente “o lirismo do amor entre um homem e uma mulher pela suavidade dos passos, pela confiança e entrega nos movimentos e pelo desafio da fusão dos corpos em tênues equilíbrios”. Em outras palavras, uma peça que traduzia a perfeição da parceria dos três: John Cranko, Márcia Haydée e Richard Cragun.

Com música do o violonista polonês Henryk WieniawskiLegend, op. 17 (que por sua vez compôs como uma confissão de amor à sua futura esposa, Isabel Hampton), o pas-de-deux é curto (certa de 7 minutos) e não fosse o filme Momento de Decisão (The Turning Point) – que só mostra um minuto e meio – não seria muito conhecido. Mas é perfeito.

O pas-de-deux, que foi encenado pela primeira vez em 29 de junho de 1972, não tem cenário e traz o casal principal de branco em movimentos que exibem o lirismo e técnica, em movimentos típicos de Galina Ulanova assim como de Márcia (via Cranko). Na estreia, a brasileira dançou com a túnica da lenda russa, que é a base para o figurino atual.

Há mais a ressaltar quando se sabe dessa ligação. A túnica foi usada por Galina na produção de Romeu e Julieta, uma produção que hoje tem muitas versões, entre Kenneth McMillan e o próprio John Cranko, mas que foi criada para ela nos anos 1930s, com música de Prokofiev e muitas discussões de bastidores.

A ideia de montar o balé em cima da história de Shakespeare veio originalmente de Sergei Radlov, na época Diretor Artístico do Kirov (agora o Mariinsky), ainda em 1934, que desenvolveu o roteiro e pediu a um de seus parceiros de xadrez favoritos, Sergei Prokofiev, que compusesse a música. Prokofiev já tinha até feito trilhas sonoras, mas nunca havia composto para um balé completo e aceitou o desafio, terminando a partitura em setembro de 1935. Aí, a coisa desandou. Há a versão de que o teatro não via como “mortos podem dançar” e outra que culpa o regime comunista, seja como for, a alternativa era alterar o final original para um feliz. Obviamente, Prokofiev não gostou dessa imposição. O impasse paralizou tudo e o projeto foi engavetado antes de ser transferido para o Bolshoi, onde foi considerado inadequado.

Seis anos depois, o próprio Kirov resgatou a proposta, dessa vez com coreografia de Leonid Lavrosky feita especialmente para Galina Ulanova (Julieta) e Konstantin Sergeyev (Romeu). Estreou com sucesso em 11 de janeiro de 1940, mas virou febre em 1946, quando Lavrosky e Galina, agora no Bolshoi, remontaram o balé. O filme feito dessa apresentação é um dos mais icônicos do período, passando por outras controvérsicas (foi proibido no Brasil por ser considerado propaganda do comunismo) e foi com Romeu e Julieta que o Bolshoi visitou Londres pela primeira vez, em 1956 (como mostrado em The Crown).

O sucesso da apresentação de Galina como Julieta impactou não apenas estrelas como Margot Fonteyn, mas dois jovens coreógrafos iniciantes que estavam na platéia: Kenneth McMillan e John Cranko. Cranko imediatamente passou a trabalhar na versão dele, que muitos mostram ter sido muito influenciada pelo que viu. Tanto que sua primeira encenação foi apenas dois anos depois, em 1958, na Itália, com Carla Fracci, então com 21 anos, como Julieta. A versão que hoje conhecemos foi a revisada de 1962, já com Marcia Haydée e Richard Cragun nos papéis principais, com críticos identificando a influência da coreografia de Lavrovsky nas elevações e piruetas. Depois de ver o que Cranko fez com Romeu e Julieta que McMillan criou a versão dele, em 1965, hoje a mais popular fora da Rússia. No entanto, é desse Romeu e Julieta que nasceu Legende, um pas-de-deux romântico em todos os sentidos e que une as lendas – metafóricas e reais – em uma coreografia lindíssima.

Legend foi remontado pela primeira vez no Brasil pela São Paulo Companhia de Dança, com supervisão de Richard Cragun, antes de sua morte, em 2012.

Nessas coisas da Internet, esbarrei com a gravação que não entrou completa em Momento de Decisão (The Turning Point). No filme ficaram apenas menos de dois minutos, mas o pas-de-deux foi filmado na íntegra. Um momento especial, lendário, que merece ser lembrado.


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