Perto de completar 50 anos, o feminicídio mais chocante do Brasil vira filme com Angela

Há três anos, em plena pandemia, toda uma nova geração “descobriu” a triste história de Ângela Diniz com o podcast Praia dos Ossos, que resgatava o feminicídio que parou o Brasil em 1976. O longa, dirigido por Hugo Prata, traz Isis Valverde no papel título e uma recepção negativa no Festival de Gramado, aparentemente por um número significativo de cenas de sexo ao longo da história. Elenco defende a obra e reclama de machismo, feministas reclamam de exploração… nem quase 50 anos depois há unanimidade sobre Ângela Diniz.

Conhecida como “a pantera de Minas”, Ângela era uma mulher típica de sua geração. Casou nova, aos 17 anos, teve três filhos, mas, quando o casamento acabou em desquite (não havia divórcio), com apenas 26 anos e uma vida pela frente, ela passou a ser vista como uma mulher “perigosa” moralmente. Sua vida de “mulher separada” foi marcada por violência e mortes, incluindo, tragicamente, a sua, poucos anos depois.

Vivendo em Belo Horizonte e sem a guarda dos filhos, que ficou com o ex-marido, em 1973 o nome dela foi parar nas noticias policiais quando o corpo do caseiro e vigia de sua casa,

José Avelino dos Santos (vulgo Zé Pretinho), foi encontrado com um tiro no rosto, próximo à janela, com uma faca na mão e a braguilha aberta com sinais de ejaculação. Para tentar salvar a reputação de seu namorado na época, que era um homem casado, Ângela inicialmente assumiu a culpa, alegando legítima defesa, mas logo ficou impossível de esconder a verdade e Tuca Mendes assumiu ter dado o tiro, também como autodefesa.


Diante do escândalo de assassinato, uma mulher descasada com um homem casado em casa, e circunstâncias reais do crime jamais esclarecidas, rapidamente os rumores de que ela tinha caso com a vítima ganharam força. Tuca foi condenado a dois anos de prisão com sursis, o que acabou sendo ser liberado da Justiça.

Sem clima para seguir na cidade, Ângela mudou para o Rio de Janeiro, onde ganhou o “apelido” de Pantera de Minas e circulava nas festas mais badaladas da cidade. No final de 1974, foi envolvida em novo escândalo quando, ao visitar os filhos em Minas, decidiu trazer sua filha com ela sem avisar ao ex-marido, que a denunciou por sequestro, mesmo que a menina tenha voltado para Belo Horizonte em uma semana. A pena foram seis meses de prisão. O inferno continuou quando no ano seguinte uma denúncia anônima levou a uma batida policial em sua casa atrás de drogas, e a socialite teve que admitir ser “viciada em drogas” para escapar a prisão por posse de mais de cem gramas de maconha encontradas em sua residência.  

Nessa trajetória cercada de escândalos e drama, Ângela conheceu o paulista Doca Street (Gabriel Braga Nunes), com quem estava em Búzios, na casa alugada pelos dois na Praia dos Ossos. Todos testemunharam que o relacionamento foi marcado por violência doméstica e muitos ciúmes de Doca, reforçando a imagem machista de “indomável” que Ângela passaria a ter por muitos anos. Todos a condenavam porque ele teria “abandonado mulher e filhos por ela”, mas ainda assim não era fiel a ele. Em dezembro de 1976, os dois estavam oficialmente em Búzios para fugir da agitação do Rio, porém, na noite do dia 30 de dezembro, brigaram tão feio que Doca saiu de casa. Ao retornar horas depois, voltaram a discutir e ele a matou com nada menos do que três tiros no rosto e um outro na nuca. Seu argumento? Defesa da honra.

Embora tenha fugido e ficado escondido por semanas, só se entregou quase um mês depois, com a opinião pública ao seu lado. Seu julgamento, em 1979, expôs a vida de Ângela como a de uma mulher devassa, responsável por tudo que aconteceu. Doca foi condenado a 18 meses de prisão (com mais seis meses por ter fugido), mas como já tinha cumprido um terço da pena, foi liberado, saindo um homem livre do tribunal. O movimento feminista abraçou a causa contra ele, e o lema – quem ama não mata – surgiu na época, pois a socidade machista alegava que o assassinato “foi por amor”. A pressão acabou provocando um segundo julgamento dois anos depois, condenado então a 15 anos.


Por muitos anos houve intenção de levar a vida de Ângela Diniz ao cinema (a série Quem Ama Não Mata foi ao ar em 1982 e o Linha Direta fez a reconstituição do crime e do julgamento), mas apenas agora efetivamente, na onda do sucesso do podcast Praia dos Ossos que saiu do papel. Em 2006, em sua biografia, Doca Street, voltou a insistir em sua vulnerabilidade e possessividade, como justificativas para ter perdido razão temporariamente. É uma pena que o nosso cinema não consiga contar essa história direito. Nem o avanço do tempo muda a ótica negativa sobre a vida de uma mulher jovem, que foi calada por não seguir o padrão da época. O filme entra em cartaz no dia 7 de setembro.


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