O nome de Márcia Haydée sempre esteve ligado ao Stuttgart Ballet, em especial por ter sido a musa de John Cranko, assim como foi sua substituta como diretora artística quando ele faleceu, em 1973. Durante sua liderança, Márcia manteve a mescla criada pelo coreógrafo: modernidade, clássicos e revisões de balés conhecidos. Ela não saiu dos palcos para coreografar até mais tarde em sua carreira, tendo revisado A Bela Adormecida e Giselle, entre outros.
Se ela foi a musa de Cranko, pode-se argumentar sem dúvida que seu ex-marido e seu partner de 30 anos, Richard Cragun, foi o seu. Virtuoso e bom ator, versátil nos palcos como poucos, Cragun sempre teve destaque nos trabalhos originais de Márcia. Sua Carabosse em A Bela Adormecida é icônica, mas foi em 1992, que Márcia Haydée recriou para seus amigos, incluindo ele, uma versão moderna de Giselle. Uma que é 100% original e em nada reflete a coreografia tradicional de Jean Coralli ou Marius Petipa. Por muitos anos inacessível, essa versão do ballet completo pode ser visto no youtube e é interessante.
Dito tudo isso, vale o disclaimer que tradicionalistas podem se ressentir com a proposta de Márcia, mas ela ainda é válida. A coreógrafa inverte a narrativa, assim como os passos. A trama sai de uma vila na Alemanha na idade média para os anos 1800s, onde encontramos primeiro um atormentado Hilarion (Richard Cragun), já chorando pela morte de sua amada, Giselle (Birgit Keil). O primeiro ato funciona como um flashback onde vemos que Hilarion tinha se afastado de sua cidade e quando volta, trazendo presentes e esperando reencontrar Giselle, descobre que na sua ausência ela se apaixonou pelo sensível pintor Albretch (Tamas Detrich), que era noivo de Bathilde, mesmo amando Giselle.


Assim como na história original, Hilarion tem uma natureza violenta e seu ciúme crescente é o prenúncio da tragédia. Giselle tem um pressentimento também, onde percebemos o espectro de Myrtha (Catherine Batcheller), a Rainha das Wilis, acompanhando o drama. Quando o triângulo amoroso se transforma em uma disputa física entre Hilarion e Albretch, Giselle tenta interferir e acaba sendo esfaqueada acidentalmente pelos dois. Não há uma cena de “loucura”, mas a da morte de uma pessoa que não tem um fim de Paz. O primeiro ato termina portanto na cena de abertura, com Hilarion, chorando e lembrando de como perdeu tudo.
No segundo ato, ele também está em destaque. Hilarion está na floresta onde Giselle foi enterrada e logo é cercado pelas Wilis, lideradas por Myrtha. E aqui há outra diferença crucial na versão do Stuttgart Ballet. As Wilis, na lenda eslava, são “seres sobrenaturais” como “deusas da floresta” e por isso não almas vestidas de branco, como costumamos ver. É um ato mais soturno, onde elas são mais como as bruxas de MacBeth do que os espíritos que costumamos ver em Giselle. Hilarion tenta negociar com elas por sua vida, mas em vão. Sim, elas evocam Giselle, que salva Albretch e os dois se despedem ao nascer do sol, mas nada é exatamente como já vimos antes.
Eu diria que a maior ousadia de todas dessa versão do ballet é a estranha a proposta de tirar o protagonismo da própria Giselle, com menos solos ou liderança na história. Aqui ela é uma moça abusada emocionalmente e vítima do feminicídio, nada da versão tradicional de seu coração parar ou se matar quando descobre que foi traída por Albretch. Na visão muito clara de Márcia, “Ninguém morre de amor”. E funciona graças ao brilhantismo de Richard Cragun.
Recriar balés do zero, para alguns, seria uma forma de “salvar” a Arte do Balé clássico. Nem sempre funciona. O próprio Stuttgart não dança mais essa versão, optando pela mais usual com os passos de Jean Coralli. Como é raro e curioso, vale tentar conferir.
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