Para nós estrangeiros, o nome de Grace O’Malley não diz nada, mas, na cultura britânica ela é tão relevante que já tem uma série em desenvolvimento na Australia, All The Queen’s Men, onde sua rivalidade com a Rainha Elizabeth I será o tema central. Embora fosse um mundo dominado por homens onde raramente mulheres se destacavam na liderança, Grace, na descrição da série, é chamada de “Rainha das Rebeliões Irlandesas”. E sua história é, de fato, fascinante.
Ela faleceu há 420 anos, em 1603, aos 73 anos – uma vida longa para a época – e vinha de uma linhagem nobre irlandesa, sendo hoje citada como uma das três piratas mulheres mais famosas da história (ao lado de Anne Bonny e Mary Read). Seu status de “Rainha” merece um adendo: mesmo sob domínio britânico, os nobres irlandeses tinham uma certa autonomia, algo que só mudou no reinado do pai de Elizabeth I, o Rei Henrique VIII. Nesse cenário, o pai de Grace, que vinha de uma dinastia de marinheiros, era o 10º lorde da dinastia Ó Máille (O’Malley), e senhor de Umall, entrou em conflito com a Coroa inglesa. Isso porque como eram donos de vários castelos no litoral irlandês, taxaram todos aqueles que pescaram em suas praias, incluindo os ingleses. Ou seja, a rivalidade veio de berço.

A pequena Grace era a única filha legítima e mesmo com a existência de um meio-irmão, onde se esperava que o herdeiro masculino passasse à frente das mulheres, o pai de Grace a reconheceu como a representante legal da família, em terra ou no mar. Algo meio Viserys e Rhaenyra de House of the Dragon, onde outra similaridade era que desde pequena ela acompanhava o pai nas negociações de comércio. Diz a lenda que quando ele a proibiu de acompanhá-lo à Espanha, alegando que os longos cabelos da filha poderiam se enroscar nas cordas do navio, Grace simplesmente o cortou bem curto para poder ir. Não sei se conseguiu, mas ganhou o apelido de Gráinne Mhaol onde maol significa careca ou cabelo bem curto.
A infância de Grace incluiu ser educada longe de casa, sob tutela de outra família e ela aprendeu inclusive latim, que foi o idioma que usou para conversar com Elizabeth I em 1593. Seja como for, ela seguiu a tradição e se casou ainda jovem, com um noivo escolhido por seu pai para selar uma aliança política com os Ó Flaithbheartaigh (O’Flaherty). Ficou ainda mais rica e influente, com cerca de mil cabeças de gado e cavalos. Dessa primeira união, ela teve três filhos, dois homens e uma mulher, e seriam o coração do futuro conflito com a rainha Tudor.
O marido de Grace tinha ambições políticas de ser o principal líder na Irlanda, mas foi superado por um parente nomeado pela Coroa inglesa em vez dele. Em 1565, foi morto em uma emboscada durante uma caçada, parte do conflito entre as clãs irlandesas. Todos esperavam que a jovem viúva não oferecesse resistência, mas se surpreenderam. Não apenas defendeu seu Castelo, como forçou o recuo de seus inimigos. Ela retornou para suas próprias terras e se fixou na Ilha Clare, onde supostamente tomou um marinheiro naufragado como amante. O romance foi breve pois ele foi morto pelos inimigos de Claire, que como vingança atacou e conquistou o Castelo Donna, ganhando o apelido de ‘Dama das Trevas de Dona’.
Como esperado, ela voltou a se casar e teve um outro filho, que veio a ser o primeiro Visconde Mayo. Famosa já nessa época, viria a ser lendária 10 anos depois, quando se envolveu em mais conflitos com os ingleses, citada como a “mais famosa capitã do mar feminina” e “uma mulher notória em todas as costas da Irlanda”. Seu pior rival foi o governador inglês, Sir Richard Bingham, cuja ganância e violência marcariam as páginas da História. Nomeado em 1584, ele tinha como missão regularizar o pagamento de taxas da nobreza local, que reagiu. Nos julgamentos presididos por Bingham, proferiu mais de 70 sentenças de morte por deslealdade à coroa. Bingham chamou de “a enfermeira de todas as rebeliões na província durante estes quarenta anos”.
Nos embates sangrentos contra Bingham, ele atacou seu castelo na Ilha Clare e a forçou a escapar. Nessa época, Grace escreveu para Rainha pedindo “que lhe concedesse algum sustento razoável para o pouco tempo que ela tem de vida”. Em troca, ofereceu “a rendição em suas mãos” das terras de seus dois filhos e de seus dois sobrinhos sobreviventes, e “livre liberdade durante sua vida para invadir com espada e fogo todos os seus altíssimos inimigos onde quer que estejam ou estejam … sem qualquer interrupção de qualquer pessoa ou pessoas”.

Bingham matou o primogênito de Grace e capturou o caçula e o meio-irmão dela, os fazendo de reféns e acusados de traição. Desesperada, Grace navegou para a Inglaterra com 200 homens para fazer uma petição pessoalmente à Rainha Elizabeth I pela libertação de seus parentes. E, segundo a lenda, que é a base da nova série, elas se encontraram no Palácio de Greenwich.
Se a ficção vai adotar as versões de que Grace se recusou a curvar-se diante de Elizabeth porque se considerava “Rainha da Irlanda” e que tinha uma adaga escondida com ela, vamos descobrir. A versão é que Elizabeth I estava tranquila e que as duas conversaram sem problemas, com a Rainha inglesa oferecendo um lenço com borda rendada quando Grace espirrou, mas que que todos ficaram chocados quando a irlandesa assoou o nariz e jogou o pano em uma lareira próxima. É que na Irlanda um lenço usado era considerado sujo e devidamente destruído, não era uma afronta à Coroa, como acharam.
Nesse encontro, ao que parece, a Rainha pareceu se consternar com os relatos de violência por parte de Sir Richard Bingham, tentando encontrar uma alternativa para aliviar a situação. Grace convenceu Elizabeth que mandou soltar seus parentes e que os impostos indevidos fossem devolvidos o que obviamente ele discordou. Com uma frota de três grandes galeras, Grace atacou Bingham que a acusou de rebelião e tomou suas propriedades, a forçado a voltar pedir ajuda à Inglaterra, sem jamais desistir de lutar. Finalmente uma conspiração contra Sir Richard Bingham o fez fugir e ele foi preso quando retornou à Londres.
Grace teria vivido até os 73 anos, morrendo no Castelo Rockfleet no mesmo ano da morte de Elizabeth I. Sua história, até então, faz parte do folclore irlandês, mas pelo visto, ganhará o mundo. All The Queen’s Men está ainda em produção, vamos acompanhar!
Descubra mais sobre
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
