Quem é Laura Testvalley em The Buccaneers

Quem está acompanhando a série The Buccaneers na Apple TV Plus e não leu o livro de Edith Wharton já pescou que a silenciosa governanta Laura Testvalley é tudo menos uma mulher subserviente. A personagem da atriz Simone Kirby é ao mesmo tempo carinhosa e suspeita, e obviamente está ligada à infelicidade e esperanças das jovens ‘bucaneiras’ que lideram a trama, em especial, Nan St. George (Kristine Frøseth). No final do quarto episódio a vemos trocar significativos olhares com o Coronel St. George (Adam James) e um momento íntimo com Lord Richard Marable (Josh Dylan). Ela é vilã ou mocinha?

Para tentarmos pescar quem realmente é Laura Testvalley vamos equilibrar o que sabemos no livro e o que a série sugere, aguardando as confirmações. Chegamos à metade da história e ela ainda é um mistério.

A minha teoria é que Laura é a mãe verdadeira de Nan, embora a original seja apenas uma mãe psicológica. Não fica tão claro de início, mas A Sra. Testvalley é a governanta das meninas St. George porque a Sra Saint George (Christina Hendricks) queria compensar o fato de que não tinha como preparar suas filhas para brilharem na sociedade sem uma governanta britânica, que ensinaria a elas a se tornarem ‘damas’. Já a conhecemos no casamento de Conchita Clossom (Alisha Boe) com Lord Richard e é a governanta que sugere a viagem das amigas da noiva para Inglaterra e as prepara para ‘debutar’ na sociedade britânica. A sugestão pareceu mais uma ordem em Richard (agora sabemos porquê) e na teoria seria para tanto ajudar Conchita a se adaptar à rígida sociedade britânica como ajudaras a amigas a encontrarem maridos também. Mais tarde, quando Nan começa a dar trabalho e ameaçar atrapalhar o plano, a Sra. Testvalley leva a jovem para uma viagem justamente perto do palácio de Theo (Guy Remmers), o Duque de Tintagel, levando a Nan e Theo a se conhecerem e se apaixonarem (?), algo mais do que conveniente. Agora que vimos que ela e Lord Richard foram ou são amantes, toda iniciativa dela fica suspeita.

No livro, mais ainda, no livro inacabado de Edith Wharton, a cinquentona Laura Testvalley é uma personagem moderna e misteriosa. Tipicamente nos livros da autora, a sexualidade e casos extra-conjugais escandalosos estão na trama, revelando que a repressão social não segurava o fogo real das mulheres, e também gostava de explorar a dicotomia do papel feminino. Em The Buccaneers, a governanta é uma mãe-substituta que educa e que também acoberta, fazendo de Nan tanto uma menina como uma mulher. Na versão literária, ela entra na vida de Nan St. George quando ela tem dezesseis anos, no auge de sua dificuldade de equilibrar uma natureza curiosa, rebelde e criativa quando o esperado de uma mulher era o oposto.

A Sra. Testvalley sabe fazer com que Nan tenha apoio emocional sem se sentir aprisionada, descrita pela escritora como “uma aventureira, mas de grande alma”, sendo precisa quando alimentar os anseios da protagonista assim como quando chamar a atenção e mantê-la na linha, sem vitimizá-la, também nas palavras de Wharton, “embora a senhorita Testvalley fosse frequentemente gentil, ela raramente era terna”. O que é – e será surpreendente – é que por trás da figura sizuda ela é uma mulher que lida com a sexualidade com uma liberdade incomum para a época. Ela tem amantes (jovens ou mais velhos) e ainda vai encontrar uma paixão avassaladora. Pois, é!

Laura Testvalley é astuta e moderna, uma combinação interessante. Assim como Conchita é brasileira no livro, A Sra. Testvalley tem formação italiana, realçando a sensualidade e a visão menos restrita da cultura, que é clichê, mas que também faz mais sentido do que colocar nas americanas essa diferença brutal das inibições ango-saxãs. Na série da Apple até o momento as origens das duas – Conchita e Laura – não são destacadas e até aparentemente alteradas. Mas a proeminência da citação brasileira na história original é importante porque reforça a importância do imaginário latino, onde o contato com o Brasil (seja por Conchita ou Guy indo para o Rio), liberta os instintos sexuais reprimidos de todos, e onde a cultura brasileira relaxa as pessoas.

A visão de Edith Wharton sobre Laura Testvalley é mais importante do que a de Conchita. De origem italiana, ela teve um caso com Lord Richard que considerava encerrado. Foi feliz enquanto durou, mas ficou no passado. O que não a impediu de usar sua influência sobre ele para que convidasse suas meninas para o mais importante baile da sociedade britânica. Sempre apoiando Nan, no livro, é ela quem de alguma forma alimenta as fantasias românticas da menina, lendo poesia e falando de amores passionais. Importante, no livro ela não é a mãe biológica de Nan, apenas pensa que ‘ela poderia ter sido minha própria filha’, sendo claramente a preferida da governanta.

O vínculo entre Laura e Nan deverá crescer na série porque na história original será o sacrifício da Sra. Tentsvalley que salvará a heroína de um destino infeliz. Sim, mais SPOILERS à frente.

Na série de 1995, The Buccaneers apresentou um Theo secretamente homossexual como a razão do fracasso do casamento dele com Nan. Até onde vemos na série de 2023, o romance dos dois foi rápido demais, mas parece genuíno. Ele guarda o segredo de que sabe que Guy Thwarte (Matthew Broome), seu melhor amigo, é apaixonado por Nan e como nem ela sabe desse amor, é induzida a escolher o marido errado. É fato da história original que as diferenças de personalidade entre Nan e Theo, que a princípio parecem ser ‘opostos se atraem’ será o grande catalizador de uma infelicidade extrema entre eles. Na história original, não há conexão entre a jovem e sua sogra, ao contrário, portanto rapidamente o que vemos Conchita enfrentar é também o destino de Nan, até que a Sra. Testvalley interfira novamente.

Outra diferença da série é tranformar a Sra. Saint George em uma mulher carinhosa, mantendo apenas sua insegurança e esperança de que as filhas “se casem bem”. No livro, por ter medo de se associar com as pessoas erradas, ela está sempre chamando a atenção das filhas em público, claramente aquém da função materna esperada dela. Essa parte é sugerida na série quando ela parece estar tentando demais e levando fora das mulheres mais tradicionais mesmo em Nova York, mas é uma mãe amorosa. As outras mães também são menos aptas para a missão que a Sra. Testvalley: a mãe de Lizzie e Mabel Elmsworth, carece de polimento e a mãe de Conchita (que não aparece) é uma brasileira divorciada que se casou com um americano e que prefere ficar no quarto e fumar charutos. É Laura que muda um cenário calamitoso para as meninas.

Vinda da Europa, a proposta de Laura Testvalley de levar as meninas para a Inglaterra é também para afastá-las de suas mães, inconvenientes. Tendo a experiência de educar as filhas de uma duquesa inglesa, ela é a “babá” idea e lidera a invasão “como um general”, criando estratégias perfeitas para o objetivo da viagem. Sem sacrificar seus próprios planos, claro.

As meninas se casam na sociedade inglesa. Conchita com Lord Richard, ex-amante de Laura, mas eles não se acertam e logo são mutualmente infiéis. Lizzie Elmsworth (Aubri Ibrag), passa por abuso sexual e psicológico, mas se casa com um membro do Parlamento e será feliz (sua personagem é inspirada em Jennie Jerome, que se casou com Lord Randolph Churchill e se tornou mãe de Winston Churchill), Jinny (Imogen Waterhouse) que se ajusta aos britânicos, mas que se casou com o cruel e abusador Lord James Seadown (Barney Fishwick), e, claro, Nan, que se casa com o Duque de Tintagel, mas que sofre com a severidade de sua sogra e a cobrança de gerar herdeiros (sem conseguir).

Laura vai testemunhar à distância como a alegria de viver de Nan vai se apagando aos poucos, presa em um casamento precipitado que se desgasta rapidamente. Depois que a protegida se torna duquesa, a governanta tem que trabalhar com outra família, portanto não pode ajudar Nan como gostaria, mas a atende imediatamente quando chamada e, em especial, quando percebe a tristeza da antiga protegida. A essa altura, Laura está apaixonada e vivendo um romance com niguém menos do que o pai de Guy e decide, ousadamente, ajudar a jovem a sair de um casamento sem amor. Só que vai custar caro. Ela está prestes a se tornar a Sra. Thwarte, apaixonada e fisicamente satisfeita, com brilho nos olhos e na pele e usando os cabelos soltos em vez do penteado de coques e tranças. Na época, aludir que uma mulher acima dos 40 poderia estar tão claramente sexualmente satisfeita, mesmo que implicitamente, era ousado. Conchita também é descrita como fisicamente mais relaxada e saudável quando começa seu caso extra-conjugal.

Ainda sobre Laura, veremos também que será vítima de etarismo. Salvo Nan, que a defende, as meninas vão fazer piadas sobre seu “rejuvenescimento” quando estiver apaixonada, como seu uma mulher ‘mais velha’ perdesse o direito à paixão. A americana Miss March, sessentona e esquecida, será objeto de ridicularização das meninas que se esforçam para imaginá-la mais jovem, adorável e apaixonada, ainda mais que foi esquecida até por seu antigo noivo (sogro de Conchita e Jinny).

Com dois exemplos claros de que uma mulher poderia – e deveria – estar completa e feliz (ela e Conchita), Laura sacrifica sua oportunidade de se casar com o homem que ama para ajudar a Nan a fugir com o amante e filho dele. Isso porque Sir Helmsley Thwarte tinha planos políticos para Guy e o fato dele fugir com a esposa do duque atrapalha tudo. Laura termina a história sozinha, sacrificando a rara chance de ganhar elevação social, segurança financeira e companheirismo em seus anos de declínio com um casamento que ainda mais teria sido por amor. A renúncia de Laura Testvalley é tão ou mais importante que o abraço de Nan a uma vida de paixão porque determina que voltará “sozinha à velhice e à pobreza”, sem chance de um novo amor ou vida sexual para que sua “filha substituta” possa ter tudo.

Desconfio que a série, que tirou a distância entre a Sra. St. George e Nan, vá mesmo seguir para o fato de que Laura Testvalley seja a mãe verdadeira da heroína, fazendo com que o seu sacrifício final seja por isso. Mas as mudanças, inclusive da relação de Nan com a sogra, por conta da sororidade implícita, é um contraste para a realidade da história original, onde não havia expectativa de amizade feminina em um mundo “competitivo pelo melhor marido”. A parte da fuga e romance entre Nan e Guy estava em um esboço inacabado de Edith Wharton, cujas histórias não são tradicionalmente conhecidas por “finais felizes”, então puristas questionam a conclusão de The Buccanneers, publicada décadas depois do original (inacabado) ser o último livro da autora. Parece que a série seguirá essa conclusão.

Portanto, Nan pode ser a protagonista mas a verdadeira heroína de The Buccaneers é na verdade a governanta Laura Testvalley, o ponto comum de todas personagens, mentora, amante, guia e essencial na conclusão das vidas de todos.

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