Uma história de amor e conforto em The Crown

O trabalho de Peter Morgan não é fácil. Fazer uma série biográfica não autorizada sobre duas das mulheres mais significativas e emblemáticas do século 20 é um desafio para poucos e desde 2016 The Crown vem provando que pode ser respeitosa, ousada e interessante sem necessariamente omitir fatos, rumores e até desejos sobre as vidas de pessoas reais cujo desejo jamais foi transformar sua trajetória em entretenimento. Isso mesmo, nos dias de reality shows, de redes sociais e fake news, é importante lembrar que a Princesa Diana se rebelou contra uma farsa que a aprisionava emocionalmente e pessoalmente, por isso sua história é tão empática para tantas pessoas ao redor do mundo, mesmo mais de 25 anos depois. E ela está no coração da metade final da série, que se despede em dezembro de 2023.

The Crown tem sido, para muitos, a história da Rainha Elizabeth II (Imelda Staunton), a rainha mais longeva da monarquia britânica, mas é um engano. A série é sobre a instituição da Monarquia e o impacto dela sobre os ombros de quem a lidera, no caso a Dinastia Windsor, que corou uma jovem de apenas 26 anos Rainha quando ela ainda mal pensava em seu papel na História do mundo. O peso da Coroa trouxe infelicidade para muitos, incluindo ela mais ainda mais à quem estava ao seu redor, e tem sido emocionante relembrar, descobrir e reavaliar o que achávamos que sabíamos sobre a Família Real. Embora o foco central tenha sido os Windsors e todos antecipavam a passagem sísmica de Diana Spencer (Elizabeth Debicki) por eles, houve personagens relevantes que nem sempre ganham a importância merecida, como foi o caso de Mohamed Al-Fayed (Salim Daw), que na 5ª temporada ganhou um dos melhores e mais emocionantes episódios de toda série: Mou-Mou, seu apelido. Unindo sua passagem com a conclusão da primeira parte da 6ª temporada, dá um nó na garganta.

Como já sabemos, Al-Fayed é um dos homens mais ricos do mundo e sua ascensão social, desde ser um vendedor ambulante no Egito até os bilhões que fez, merece mais do que um episódio. Impactado pela história da abdicação do rei Eduardo, ele sempre sonhou em se integrar à alta sociedade britânica e, em especial, estar no círculo da Família Real. Resumindo assim, parece uma ambição rasa mas aqui está a beleza da narrativa da série: não é. E torcemos por sua luta porque ela ganha outra dimensão nas lentes de The Crown. Por outro lado, se há uma coisa que Peter Morgan sabe fazer com precisão é inverter expectativas. Assim como nos apegamos à um jovem Charles (Josh O’Connor), oprimido por um destino que o limita ser quem quer ou amar quem ama, no caso, Camilla Shand (Emmerald Fennell), na temporada seguinte ele passa a ser o antagonista inicialmente indiferente ao sofrimento que causa à Diana (Emma Corrin). Não há mocinhos ou vilões novelescos em The Crown, são pessoas feridas e ferindo as outras, em um ciclo amarrado pela instituição que nomeia a série. Depois de nos emocionarmos com Mou-Mou, aqui também vemos que Al-Fayed pode ter interferido com o destino de seu adorado filho, Dodi (Khalid Abdalah) ao uni-lo ao de Diana.

Se Diana continua famosa como é mais de um quarto de século depois de sua morte, imaginem em vida. Se um dia sua carência por amor e atenção apreciaram a fama que ganhou ao entrar para a Família Real, ela certamente não tinha a mesma reação perto de sua morte, em 1997, com apenas 37 anos. A incessante perseguição dos paparazzi e o consumo desenfreado da vida pessoal de Diana sempre me lembraram do apavorante O Dia do Gafanhoto, de Nathanael West (“Ao ver os heróis e heroínas, a multidão se tornaria demoníaca”) e me marcaram também por sempre ter uma dúvida de como ela poderia ter escapado seu destino trágico. A resposta que ainda encontro é que não havia alternativa.

Al-Fayed e Diana se conheceram casualmente quando a Rainha se negou a participar do sonho dele, criando um objetivo ainda mais ousado para um homem que era um vencedor. Até hoje, porque a queríamos feliz e não parece que em momento algum ela tenha encontrado o amor que buscava. Se apaixonou por seu marido, Charles (Dominic West), mas a história de amor entre ele e Camilla (Olivia Williams) é e sempre foi, verdadeira. Nas outras tentativas, alguns apontam para Hasnat Khan como o possível homem que a faria feliz, mas como ele não suportou o peso da invasão de privacidade, há uma boa parte que “comprou” o romance entre ela e Dodi como o que teria dado certo. Nunca saberemos, claro.

Sem se abster de mostrar como Charles se empenhou arduamente para mudar a percepção pública de Camilla como antagonista cruel, The Crown conseguiu navegar em águas turbulentas com classe. Seja porque teve acesso às informações de pessoas íntimas da princesa ou porque é sua imaginação-desejo, Peter Morgan não é duro com Diana, mas suave com Camilla e Charles. O atual Rei concedeu uma parte de sua vida tentando ser o que esperavam dele, se casou com Diana e tentou (ela achava que nem tinha tentado, mas em sua forma, ele tentou) ser feliz com um casamento sem paixão, mas falhou. A timidez de Diana escondia uma mulher forte, inteligente e muito sensível, marcada por rejeições e dramas familiares profundos e ao ser usada para uma união de fachada, ativou gatilhos inesperados.

Na ótica de pessoas também traumatizadas e infelizes, Diana deveria aceitar e seguir em frente com dignidade, mas ela se recusou a entrar para a História como tola. Seu rancor por ter se apaixonado sem retorno é inegável e sua rebelião contra a hipocrisia fez dela uma heroína moderna. Tudo isso está em The Crown. Enquanto Spencer reforça mais a versão de uma princesa paranóica e à beira de um ataque de nervos, a série da Netflix a coloca como uma mulher em controle, mas sofrida. Sua existência era sufocante. Quando jovem se sentia isolada e ignorada. Quando adulta, isolada por atenção excessiva, um paradoxo que apenas quem passou por sua vida deve ter entendido a dimensão.

No momento de maior decisão sobre seu destino: divorciada, rica, famosa e ainda jovem, Diana se viu com opções mais limitadas justamente por conta de sua fama. Al-Fayed viu aí a oportunidade de ajudá-la e se se ajudar, a unindo ao seu filho Dodi. Toda interferência que exerceu no relacionamento que sonhou e conseguiu plantar, o conduziu à sua conclusão inesperadamente dolorosa. Como Ícaro perto do Sol, suas asas derreteram e perdeu o que mais estimava, seu filho.

A sugestão de que efetivamente Dodi e Diana tinham mais em comum do que se comenta é emocionante, pois vemos uma série de paradoxos conhecidos e momentos de conexão e romantismo imaginados. Efetivamente Diana, que ficou famosa por expor “a outra mulher” e simbolizar para todas as mulheres um dia traídas a catarse da vingança da popularidade (Diana era mais bonita, mais famosa, mais amada que Camilla), exerceu em seus últimos momentos de vida o papel de destruidora de lares, pois Dodi era noivo de outra mulher com casamento marcado quando deixou tudo por ela. O fato de que foi uma armação, que Al-Fayed queria algo a mais dessa união não elimina o fato de que tinha carinho por Diana e acreditava que seu filho era a melhor opção para ela. O que nunca saberemos é o que realmente os dois sentiam ou planejavam quando morreram juntos no acidente de carro em Paris.

Particularmente apreciei o carinho do showrunner de retratar Diana ainda sensível às dores dos que estavam perto dela, de estar vivendo sua vida e buscando a felicidade elusiva de uma vida a dois, e ter escolhido a si mesma. O carinho entre ela e o namorado foi respeitoso e respeito foi o que me ocorreu ao longo dos cinco episódios: todos tiveram suas perspectivas endereçadas. De Charles à Camilla, de William à Harry. Estamos nos encaminhando a descobrir como The Crown vai retratar William, mas já achei carinhoso como um adolescente de 15 anos, testemunhando a dor do relacionamento dos pais já está oprimido pelo papel que terá que assumir como o herdeiro do trono. Veremos sua história de amor com Kate Middleton no final da série, mas se podemos perceber algo é que Peter Morgan sabe contar uma história de amor. A que ele desenhou para Dodi e Diana foi quase poética. Uma delicadeza apreciada pelos fãs da princesa e uma comprovação para quem acompanha The Crown: uma aula de recontar com mão firme uma história que ainda está sendo escrita, mas que ganha uma nova perspectiva quando se insere compaixão na narrativa. Agora é esperar a segunda e última etapa!


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