235 anos de um dos balés revolucionários: La Fille Mal Gardée

A duas semanas do início da Revolução Francesa, os palcos do Opéra sinalizavam as mudanças sociais eram claras também na Arte. O balé clássico, já avançando e saindo dos salões de baile para os teatros, ainda era sem “histórias” ou se tinham, voltados para Deuses, Reis, Rainhas e Fadas. Até que veio a fazendeira e viúva Simone, cuja rebelde filha Lise insistia em se casar com o pobre Colas, enquanto ela queria uma união com um jovem atrapalhado, mas rico, Alain. Prepotente, Lise aproveita a distração de Simone e consegue criar uma situação onde “precisa” se casarm justamente porque ninguém estava cuidando dela. Por isso o balé, La Fille Mal Gardée ganhou tanta popularidade, afinal, o público não estava acostumado a ver pessoas reais nos palcos. Logo tudo iria mudar.

Apresentado pela primeira vez no dia 1ª de julho de 1789, La Fille Mal Gardée tinha outro nome – Le ballet de la paille ou Il n’est qu’un pas du mal au bien (“O balé da palha, ou há apenas um passo do mal para o bem”), o sucesso foi imediato. Com coreografia de Jean Dauberval, a produção sobrevive popular por 235 anos graças à leveza de sua história e humor também, coisas raras na dança até hoje, cujos balés em geral centram as tramas em dramas que terminam em tragédias.

Um balé sempre ligado à Revoluções

Tradição diz que Dauberval que quando estava viajando por Bordeaux, se inspirou em uma gravura de Pierre-Antoine Baudouin que viu em uma gráfica. Baudouin era conhecido por pintar temas idílicos e eróticos em aquarelas e giz de cera, e tinha falecido 20 anos antes. A gravura se chama Le reprimande/Une jeune fille querellée par sa mère, e é de 1865, retratando uma jovem desarrumada escondendo o amante de sua mãe, que a repreende por não ter terminado o trabalho. Dauberval achou a imagem tão divertida que imediatamente começou a criar um cenário adequado para um balé.

Na estreia, no Grand Théâtre de Bordeaux, em Bordeaux, o papel da jovem ficou com a esposa do coreógrafo, Marie-Madeleine Crespé (também conhecida como Mme. Théodore), Eugène Hus interpretou Colas, e François Le Riche criou o papel da Viúva Simone, estabelecendo desde então a tradição de homens dançando o papel feminino.

Nem a música original, uma coleção de 55 canções populares francesas da época, ou os passos ficaram guardados, mas La Fille Mal Gardée não desapareceu graças à sua popularidade na revolucionária Rússia. Há mais de uma versão da música, são algo como seis partituras, e coreografia, mas a que conhecemos e amamos é a de 1960, assinada por Frederick Ashton, que só descobriu o balé justamente por conta dos russos.

A versão de Alexander Gorsky, com música de Peter Ludwig Hertel, ficou estabelecida para o Bolshoi desde 1903. Ele se inspirou na encenação de Marius Petipa e Lev Ivanov de 1885, montada no Balé Imperial de São Petersburgo. Por sua vez, Petipa/Ivanov usaram as anotações de Paul Taglioni (irmão de Marie Taglioni) datada de 1864, de uma apresentação em Berlim. Isso explica as diferenças até hoje do que vemos do balé, uma vez que a versão de Ashton tem a linda partitura de Ferdinand Hérold, usada em uma das várias versões do balé nos final do século 18.

Mas voltemos no tempo, antes que o balé fosse parar em Moscou, apenas dois anos depois da estreia, Dauberval montou a obra para o Ballet do King’s Pantheon Theatre, em Londres, onde mudou o título para La Fille mal gardée, que passou a ser o definitivo. Nessa montagem, Charles Didelot cançou Colas. Enquanto isso, na França pós monarquia, Eugène Hus liderou a versão do Ópera de Paris. A música que hoje conhecemos no ocidente foi usada para a montagem de 1828, criada para a bailarina Pauline Montessu, mas com a estrela Fanny Elssler transformou o papel de Lise como um dos seus mais populares, ela pediu um novo e exclusivo pas de deux (ainda hoje no 2º ato) que usa melodias de Gaetano Donizetti da ópera L’elisir d’amore. 

La Fille Mal Gardeée foi encenada pela primeira vez em Moscou em 1800, com Didelot (o mesmo que tinha dançado em Londres, em 1791), no período que serviu como Maître de ballet para o Os Teatros Imperiais de São Petersburgo. Meio século depois, já na gestão de Jules Perrot, o ballet Imperial voltou a montar o balé, mas foi em 1885, quando a bailarina italiana Virginia Zucchi escolheu a obra na apresentação para o Czar Alexandre III que a camponesa sapeca ficou popular no balé russo sendo supervisionada por Petipa e Ivanov diretamente. Como curiosidade, foi Virginia a primeira a transformar a cena da mímica do terceiro ato, no qual Lise sonha em se casar e ter filhos, em um dos momentos mais esperados do balé, assim como o pas de deux das fitas, do primeiro ato.

Fixo no repertório a partir de 1894, La Fille Mal Gardée passou a ser popular entre as bailarinas, incluindo Olga Preobrajenskaya, Anna Pavlova, Tamara Karsavina e Mathilde Kschessinskaya. Foi com Matilde que uma mudança essencial foi feita: galinhas verdadeiras eram usadas no palco, mas quando Olga estava se apresentando, de propósito, Matilde teria aberto a gaiola na hora errada para atrapalhar o solo da rival, mas Olga continuou dançando como se nada tivesse acontecido e foi ainda mais aplaudida.

Mantendo sua tradição, casualmente uma das últimas montagens por anos do balé na Rússica aconteceu um mês antes da Revolução de Outubro de 1917, mas a sorte é que a essa altura La Fille mal gardée já estava anotada no método Stepanov, e esse material foi essencial para as remontagens futuras.

Da Rússia para o mundo

Em 1903, o Ballet Bolshoi recuperou La Fille mal gardée com coreografia de Alexander Gorsky, baseada na produção de Petipa/Ivanov, que passou a ser a ‘definitica’ da companhia enquanto no Kirov foi mantida a de Oleg Vinogradov, que saiu do repertório em 1995 ainda não voltou.

Nesse passar do tempo, nem a França lembrava mais de La Fille Mal Gardée, foi necessário que Anna Pavlova, que adorava dançar Lise, apresentasse o balé em sua turnê em Londres, em 1912, impactando especialmente um jovem da platéia, Frederick Ashton. Os americanos só descobriram o balém em 1940 com Bronislava Nijinska e a versão do American Ballet Theatre. Em 1972 criaram uma nova versão, com Natalia Makarova como Lise e a peça foi encenada até 1984, com astros como Mikhail Baryshnikov, Gelsey Kirkland, Susan Jaffe, Cynthia Gregory, Fernando Bujones e Marianna Tcherkassky no elenco. Hoje o ABT usa a versão do Royal Ballet, considerada a definitiva. 

Como principal coreógrafo do Royal Ballet, Ahston passou a trabalhar na sua versão em 1959, cuja estreia em 28 de janeiro de 1960, fez da dupla principal, Nadia Nerina e David Blair, lendas, assim como a atuação de Stanley Holden como a viúva Simone e Alexander Grant como Alain. A essa altura, a partitura mais popular era a de Hertel, mas ele preferiu a música de Hérold, de 1828, rearranjada especialmente pelo maestro John Lanchbery, mantendo uma parte de Hertel para a famosa dança do tamanco de Simone.

A visão de Ashton é tão perfeita e musical que é uma de suas mais famosas obras. Ele contou com a ajuda de Tamara Karsavina para a cena da mímica, mas criou várias outras como as danças da fitas do segundo ato. Ele mesmo interpretou Simone em algumas apresentações. Marie Rambert ficou encantada com o prodígio e descreveu o ballet como “o primeiro grande clássico inglês”. Irônico, lembrando a eterna rivalidade entre França e Inglaterra.

No Brasil, a montagem do Theatro Municipal do Rio de Janeiro é uma das mais queridas do público, tendo marcado a estreia de um jovem Julio Bocca em seu primeiro papel principal, ainda nos anos 1980s. No ano em que completa 235 anos, La Fille Mal Gardée segue um dos mais populares de todo mundo e merece.


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