Quando a verdade é surreal: Um Pesadelo Americano

A série documental Um Pesadelo Americano parece do início ao fim uma bizarra história de ficção. Um casal é atacado durante a madrugada por intrusos vestidos com roupas de mergulho, e são amarrados, forçados a ingerir drogas sedativas e tiveram os olhos cobertos com óculos escuros. Todas as ordens eram dadas com uma mensagem pré-gravada que dizia que a mulher seria sequestrada e libertada 48 horas depois por resgate. Quando ele acordou no dia seguinte, recebeu mensagens exigindo dois pagamentos de US$ 8.500 para que a namorada fosse libertada. Ele arriscou tudo e chamou a polícia. O pior estava por começar. Em vez de levar à sério o crime, inclusive a acusação dela ter sido estuprada, a polícia – assim como nós, vamos admitir – desconfia das vítimas porque é tudo tão inverossímil que só pode ser armação. E não é. É verdade. É um pesadelo.

Há tempos sou abertamente severamente crítica da onda de documentários que a Netflix seleciona e disponibiliza em sua plataforma. 10 entre 10 são parciais, com fontes únicas e pura propaganda. Demanda de seu público uma curiosidade de confrontar o que é apresentado com a pesquisa que os documentários não apresentam. E assim é mais ou menos o caso de Um Pesadelo Americano, cuja história é sem exageros inacreditável.

A sinopse é essa: “Um casal sofre uma invasão de residência e um sequestro, mas a polícia não acredita na versão dos dois. Por que as vítimas pareciam tão calmas? Será que era tudo uma farsa? Da equipe por trás de “O Golpista do Tinder”, esta série documental de três partes examina as consequências de uma sociedade que tira conclusões rápido demais e os danos causados quando as autoridades decidem que a verdade não pode ser real.

Denise Huskins e Aaro Quinn foram vítimas de um dos casos mais intrigantes que a ficção jamais conseguiria inventar. Os dois, por serem calmos, lógicos e detalhistas, passaram uma “impressão errada” para a polícia, que esperava do casal uma reação mais emocional diante do trauma. Por isso, levou tempo e ignorou qualquer oportunidade de realmente investigar o crime, solucionado pelo acaso e dedicação de uma mulher da polícia de outra cidade. Mas me atropelo aqui.

A narrativa do documentário nos conduz a ter inicialmente ter a mesma reação da polícia. Aaron ligou para reportar o sequestro horas depois do ocorrido, com calma, sem emoção. Quando Denise reapareceu 48h depois, ela igualmente estava calma. Embora os dois relatos do sequestro fossem iguais, sugerindo veracidade, o que ela contou do cativeiro e do estupro esbarrou com o machismo e preconceito de uma sociedade patriarcal. Sob medo e pressão, ela se submeteu às duas vezes que foi obrigada a ter relações com o sequestrador e – porque não houve agressão física – foi tratado como suspeito do lado dela! E piora.

Em 2012 o best-seller de Gillian Flynn, Garota Exemplar (Gone Girl), fez tanto sucesso que apenas três anos depois virou o filme dirigido por David Fincher e estrelado por Rosamund Pike (indicada ao Oscar) e Ben Affleck. A história de um homem que volta para casa e descobre que sua mulher desapareceu, passando a ser o principal suspeito do crime, apesar de que tudo é uma armação da própria esposa. Ela reaparece dias depois, alegando ter sido sequestrada e violentada, mas tudo não passava de uma vingança contra o marido. Para azar de Aaron e Denise, Garota Exemplar (Gone Girl) ainda estava em cartaz e em destaque quando eles passaram pelo desespero de serem atacados, portanto quando a polícia fez a conexão, eles passaram a ser julgados como golpistas. Mesmo que isso fizesse ainda menor sentido do que a violência da qual foram vítimas para começar.

O documentário explora todos os motivos que levam a pessoas que deveriam ser treinadas para ignorá-los caírem na armadilha do preconceito. O erro jurídico custou ao casal sua reputação, aumentando o trauma para Denise, que já era uma sobrevivente de abusos sexuais mesmo antes do sequestro. Quando a verdade vem à tona – eles estavam mesmo falando a verdade – você se sente envergonhada, frustrada e penalizada.

Depois que os dois são humilhados e processados por fraude, a resposta veio de uma policial de outra cidade, a sargento Misty Carausu, que investigando outro crime não apenas prendeu o o verdadeiro perpetrador, Matthew Muller, como solucionou (parte) do mistério. Muller foi condenado à 40 anos de prisão e Aaron e Denise, hoje casados e com duas filhas, receberam uma indenização de US$ 2,5 milhões por difamação. Nenhum dos policiais envolvidos no caso foi punido, e pior, o detetive principal do caso, Mat Mustard, foi premiado como policial do ano em 2015. Que é o ponto de Um Pesadelo Americano: de quem é a culpa?

Quando a ficção tem um impacto tão forte de justificar preconceitos e erros como esse, como resolver a questão? Forçar as peças a fazer sentindo em uma narrativa pré-determinada é a tradução de injustiça. E por isso é importante assistir a esse documentário porque ele é assustadoramente real, atual e desesperador. Infelizmente gatilho também para uma nova onda de popularidade de uma ficção sexista que criou uma personagem feminina manipuladora (e louca), que deturpa a veracidade de estupro apenas para alcançar seu objetivo de vingança. A história de Garota Exemplar (Gone Girl) é pesada e ela sim, inverossímil. O pesadelo é ver o quanto nossos valores estão invertidos e confusos. Um pesadelo sem fim.


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