Os 30 anos de um clássico: A Rainha Margot

Em 1994, a superprodução franco-italiana Rainha Margot tomou Cannes e o mundo de surpresa, custando milhões e gerando outros tantos nas bilheterias, sendo o maior sucesso do ano na Europa, arrebatando prêmios e, sem exageros, criando um clássico.

Estrelado na época pela maior estrela francesa, Isabelle Adjani, o filme inovou em narrativa, trilha sonora e mesmo 30 anos depois, segue espetacular. Seria impossível séries históricas como A Rainha Serpente (que se aproxima do período histórico), por exemplo. A perfeita mescla de ousadia, criatividade e genialidade.

A versão de Alexandre Dumas

O escritor Alexandre Dumas gostava bastante do gênero não-ficção, usando personagens históricos para suas grandiosas histórias de aventuras e romance. Os Três Mosqueteiros, de 1844 e O Conde de Monte Cristo, de 1845, são exemplos dos sucessos publicados por ele. Ainda em 1845, ele lançou Rainha Margot, um romance histórico usando como cenário os complexos e traumáticos conflitos políticos e religiosos da França do século XVI. O sucesso foi tão grande que quase imediatamente foi traduzido para o inglês.

Obviamente, o contexto histórico – cheio de liberdades por parte do autor – causou certa reação na época. A história tem como pano de fundo as guerras religiosas francesas entre católicos e protestantes de cara com o sangrento Massacre do Dia de São Bartolomeu, o assassinato em massa de huguenotes (protestantes franceses) que começou em Paris na noite de casamento da então princesa Margot (católica) com Henry de Navarra (protestante). A violência saiu de Paris e se espalhou para outras cidades, sendo até hoje um dos fatos históricos mais vergonhosos da História.

O texto preciso de Dumas explora as tensões religiosas e as manobras políticas da família real francesa dos Valois, assim como as implicações internacionais destes conflitos. O problema está no uso de “rumores” da propaganda contra os Valois, colocando invenções como fatos, tudo para ressaltar o impasse entre o amor e o dever. Embora dê título à obra, a Rainha é quase coadjuvante de sua própria história quando ele se concentra na amizade entre o protestante La Môle e o católico Coconnas.

A verdadeira Margot, cuja biografia é frequentemente complexa (li mais de uma com imagens conflitantes de sua personalidade e papel no drama), é descrita como “presa” entre seu dever para com a família e seu amor por La Môle. Por obrigação, tem que se casar com Henri, que mais tarde seria o Rei Henrique IV da França, filho de uma inimiga de sua mãe, a Rainha Serpente, Catarina de Médici. Porém, o verdadeiro plano dos Valois era outro e um erro menor detona a ordem do massacre, deixando todos, inclusive Margot, em sério risco.

Por conta da união com Henri é Rainha de Navarra, mas na verdade, uma prisioneira em Paris tanto quanto seu marido. Forte e inteligente, ela navega nas águas traiçoeiras da corte francesa com habilidade e graça, buscando sua independência e liberdade. Os Valois, católicos, são os antagonistas e Henri de Navarre é retratado como um líder astuto e pragmático que prioriza o bem-estar de seu povo, o oposto da ganância e maldade de sua sogra, Catarina de Médici, a rainha-mãe.

Uma história pouco explorada no cinema ou TV

Embora seja um dos capítulos obrigatórios em todos os cursos de História ao redor do mundo, o cinema nunca recontou Rainha Margot com a mesma frequência de Os Três Mosqueteiros ou O Conde de Monte Cristo. Foram DUAS vezes apenas: em 1954, com Jeanne Moreau como Margot e em 1994, com Isabelle Adjani. Ou seja, há 50 e há 30 anos. O conflito pessoal entre mãe e filha, que nunca se deram, seria por si só um material incrível a ser explorado!

Marguerite de Valois talvez ficasse de fora das páginas da História não fosse a pretensão de seu casamento uma arma tão violenta de repressão religiosa. Conhecida apenas como Margot, tecnicamente chegou a ser rainha da França, mas foi tão breve que mal conta.

Única filha mulher de Henrique II e Catarina de Médici, ela jamais foi próxima dos dois que se preocupavam mais com os filhos, Francisco II, Carlos IX e Henrique III. O casamento político que detonou o Massacre de São Bartolomeu já começou mal pois agressivamente a noiva elegeu o vermelho dos Valois para a cerimônia e ficou muda, precisando ser empurrada (literalmente) pelo irmão para grunhir um ruído que foi considerado um “sim”.

Como tentou pacificar os dois lados, mas só desagradou a ambos. Nunca conseguiu gerar um filho do marido e era conhecida por colecionar amantes fora do casamento (La Môle foi efetivamente um deles). Viveu em exílio por 20 anos e quando o marido se converteu ao catolicismo e virou rei, ele pediu e conseguiu o “divórcio real” que era a anulação do casamento. Margot foi compensada com uma generosa indenização, portanto não é uma das Rainhas francesas que lembramos com agilidade. Foi a primeira princesa a escreveu uma autobiografia, era considerada elegante e culta, mas essas qualidades foram omitidas por Alexandre Dumas, que a retratou como ninfomaníaca e incestuosa, uma versão comum depois que os Valois caíram do Poder. O filme alivia levemente essa insinuação, colocando o amor verdadeiro por La Môle como a motivação para se afastar de seus parentes. Problemático, mas ainda o menor dos defeitos da obra.

As divas francesas como a Rainha fogosa

A versão de 1954, estrelada por Jeanne Moreau foi vendida no exterior de forma reveladora: Os Amores de uma Rainha (A Woman of Evil). Isso mesmo, a “Rainha Fatale” com cenas explorando a nudez de Jeanne Moreau. Foi considerado na época luxuoso por estar com cores fortes, um roteiro ousado e uma bela trilha de Paul Misraki.

Aqui, a impetuosa Margot (Jeanne Moreau), filha de Catarina (Françoise Rosay) e irmã de Carlos IX (Robert Porte), que se casa com o príncipe huguenote (Andre Versini) mas na noite do massacre dos protestantes, um belo conde tropeça quarto de Margot e os dois se apaixonam. Considerado um clássico na França até a versão de 1994.

Quarenta anos depois, Isabelle Adjani viu no livro de Dumas um projeto potencial para gravar com seu namorado da época, Daniel Day-Lewis. Isso mesmo, a proposta era ter uma versão em inglês com os dois, mesmo que ela, com mais de 40 anos, fosse pelo menos três décadas mais velha que a personagem.

Quando Day-Lewis desistiu (estava gravando O Último dos Moicanos) foi substituído por Vincent Perez e Rainha Margot passou a ser uma co-produção essencialmente européia. Se hoje é trivial ter sexo e violência com uma música moderna em histórias de época, em 1994 ainda era novidade e quando a riquíssima montagem, dirigida por um dos cineastas mais célebres do país, Patrice Chereau estreou em Cannes foi um escândalo.

O realismo e a grandiosidade de Rainha Margot compensam o fato de que sua sexualidade é explorada quase de forma incômoda para hoje em dia (embora ela seja moderna buscando sexo com estranhos pelas ruas de Paris, é retratada como objeto sexual quando é abusada sexualmente pelos irmãos incestuosos na frente do marido), em um ritmo que nos permite acompanhar a trama mesmo se já tenha esquecido de boa parte da História.

A sequência do Massacre de São Bartolomeu (a inspiração do Red Wedding de Game of Thrones) é tão gráfica e sangrenta que nunca deixa de chocar, mesmo 30 anos depois. Com atuações gigantescas de todos – Virna Lisi foi premiada por sua Catarina, Isabelle ganhou o César, etc- faz de Rainha Margot ser épico, emocionante e ainda perfeito. E melhor, numa narrativa direta, sequencial, sem grandes efeitos de roteiro para contextualizar a intolerância religiosa.

A Serpente no comando da tragédia

A fascinante e controversa história da responsável por toda tragédia é apenas um detalhe não explorado em Rainha Margot pois Catarina de Médici foi por muitos anos uma Rainha odiada e temida, tanto que ganhou o “apelido” de Serpente.

A italiana Virna Lisi está mais do que perfeita no papel, está inesquecível. Sua atuação deveria a ter colocado no Oscar pois é uma aula de entrega e sensibilidade. Melhor ainda, é a única verdadeiramente italiana a viver sua conterrânea. Apesar de Samantha Morton estar espetacular na série A Rainha Serpente, ela é inglesa. E em 1954, foi a francesa Françoise Rosay que deu vida à sinistra regente. Uma sugestão? Devore a série da Lionsgate Plus antes de revistar A Rainha Margot, é outro contexto entender o que Catarina aguentou e fez até chegar onde chegou.

Um Oscar “perdido” no ano de maior concorrência

Um dos destaques mais inegáveis de Rainha Margot está nos figurinos, assinados pela alemã Moidele Bickel, cujo trabalho de reconstituição de época com toques sutilmente modernos são de tirar o fôlego.

Assim como Rainha Margot ficou à sombra da febre que foi Pulp Fiction em 1994, os figurinos do filme perderam o Oscar para os incríveis e originalíssimos modelos de Priscila, A Rainha do Deserto. Como falar de injustiça nesse caso? Impossível.

A hora de recontar a trajetória de Margot?

A entrada da jovem Margot na trama de Rainha Serpente pode trazer novo oxigênio para personagem, mas como ela em vida antagonizou com sua mãe, não há como esperar uma ótica positiva sobre ela. A jovem Philippine Velge é a “nova” Margot, mais próxima de idade que suas antecessoras, mas ainda longe de ser uma estrela.

Nos 40 anos do que foi a última visita à uma história tão fascinante, fica o sonho de que resgatem com maior carinho e cuidado a história dessa mulher fascinante que desperta tantas lendas, mas que ainda não foi retratada devidamente nas telas. Será que ainda terá chance?


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