Quando a gente se queixa de liberdades artísticas de uma adaptação de um livro para um filme é justamente por criar confusão anos depois. Por exemplo, um bom exemplo são os problemas “criados” por Anthony Minghella quando dirigiu seu excelente O Talentoso Ripley, em 1999. Para criar maior empatia do público com um protagonista minimamente dúbio (falaremos mais sobre isso a seguir), ele inventou personagens, inverteu algumas situações e deixou um final em aberto completamente distinto do que a autora Patricia Highsmith imaginou em 1955. E por conta disso também, a série Ripley, da Netflix, tem gerado listas de comparações entre filme e série, ainda mais do que o livro. Pois é, se você acha que Saltburn é mais parecido, não está sozinho.

O Tom Ripley do livro
Em 1955, a escritora Patricia Highsmith criou Tom Ripley, o protagonista do título The Talented Mr. Ripley, numa tentativa de forçar o leitor a ter empatia com uma pessoa completamente amoral.
Tom – no livro – é um vigarista agradável, também um serial killer, que está sempre às voltas com algum esquema ou crime, mas também vivendo uma vida de luxo. Sofisticado, está sempre estudando idiomas, pintando ou cuidando do jardim, se mantendo com tudo que rouba de suas vítimas. Em algum momento dos cinco livros que contam suas aventuras, ele admite que, às vezes, tem “arrependimento” de seus primeiros assassinatos (Dickie Greenleaf e Freddie Miles) por considerá-los erro de juventude, nem sabe o número certo de pessoas que vem a matar. Não se importa de verdade.
Nos livros, a sexualidade de Ripley não é explicita, mas para os leitores acreditam que Highsmith tenha dado dicas de que seja gay ou bissexual, embora ela mesma tenha negado em entrevistas. O que ninguém duvida é que Tom Ripley é na verdade, um monstro.
Tom Ripley no cinema
Em apenas cinco anos do primeiro livro o cinema descobriu Tom Ripley, com o rosto de Alain Delon no filme Purple Noon, umaa adaptação do diretor René Clément. Em 1977, Win Wenders também explorou o personagem no filme An American Friend, com Dennis Hopper, mas foi em 1999, com o filme de Anthony Minghella que um público maior.

Interpretado por Matt Damon – mais próximo de idade da personagem no livro – Tom Ripley ganhou uma interpretação mais vulnerável em alguns aspectos, mais “empática” e que confundiu os menos conhecedores do livro. É uma grande atuação e por 25 anos ficou a mais memorável de todas. Em 2002, John Malkovich (sim, que está em Ripley), interpretou o sociopata no filme Ripley’s Game. Mas agora é o rosto de Andrew Scott que promete ser o definitivo de Tom Ripley, na série da Netflix escrita e dirigida por Steven Zaillian.
As diferenças principais entre Minghella e Zaillian
Em 1999, os puristas não gostaram das liberdades que Anthony Minghella tomou em O Talentoso Ripley, mas eu meio que concordo com elas. Ao ter um elenco jovem a empatia estava quase garantida, mas “deturpa” o que está bem fiel na versão de Steven Zaillian: a frieza e o fato de que Ripley sempre foi um criminoso calculista, como maravilhosamente interpretado por Andrew Scott, não foi sendo “levado” a cometer crimes, como foi no caso da versão com Matt Damon.
Na versão de Minghella há personagens que não existem no livro (como Meredith Logue (Cate Blanchett) ou Peter (Jack Davenport)). O final, por consequência, é um totalmente original. Portanto, a série Ripley é a que é a “verdadeira”, não adianta ficar em dúvida sobre o que achou que sabia nos últimos 25 anos.
Para facilitar a narrativa, Minghella também mudou a origem criminosa de Tom Ripley, o colocando como um oportunista e sim, uma “vítima” das cirscunstâncias criadas por ele mesmo, mas, de alguma forma, torcemos pelo assassino. O mesmo não podemos dizer da versão com Andrew Scott, que é mau, golpista e soturno desde a primeira cena.

A maior diferença, ainda mais do que Andrew Scott quando comparado à Matt Damon, está no casal Marge e Dickie, que foi marcante por uma Gwyneth Paltrow no auge, um Judd Law inspirado (foi indicado ao Oscar) e que não tem a mesma energia com Dakota Fanning e Johnny Flynn. A comparação ainda mais complexa é mesmo a de Freddi Miles, cujo brilhante Philip Seymour Hoffman foi inesquecível.
E não há nada errado com nenhum dos dois, mas de alguma forma era mais fácil entender o encanto pelo contagiante e inesquecível Dickie de Judd Law do que o misterioso e observador de Johnny Flynn. Assim como a doçura da Marge de Gwyneth Paltrow a impediu de desconfiar de um obvio golpista como Tom Ripley, como a versão de Dakota Fanning, que nunca se enganou com Andrew Scott.

Uma série sem cor, com tempo e perfeita
O filme O Talentoso Ripley é longo, mas precisa acelerar para chegar à conclusão e o suspense perde um pouco com isso. Já a série da Netflix, fotografada em preto e branco com uma beleza estonteante (embora eu sinta a falta das cores que a Itália traria para a história), tem longos oito episódios para desenvolver com calma a sociopatia de Ripley. E com isso, Andrew Scott está inegavelmente espetacular.
Ultra fiel ao primeiro livro, O Talentoso Ripley, a série Ripley segue um protagonista exatamente como Patricia Highsmith descreve, quer dizer, à parte da idade. Andrew passa com assustadora perfeição a energia assassina de Tom Ripley, um homem que mente e mata a sangue frio.
O ritmo lento colabora para a sensação de claustrofobia e aquela angústia que mescla a curiosidade de como ele vai se livrar da polícia com tantas mentiras provocando outras. É incrível como Ripley nunca perde nenhuma das histórias que vai inventando. Nossa intimidade forçada com a mente doentia de um psicopata é um dos grandes trunfos da série, mas só funciona graças à Andrew Scott, com longos silêncios onde conseguimos acompanhar seus pensamentos em olhares expressivos, gestos controlados e muito, mas muito, carisma.
O Tom de Andrew Scott nunca relaxa, nunca deixa de ter um plano B na manga. Seu poder de observação o ajuda a estar sempre um passo à frente (e subindo escadas! Quantas ele sobe a cada episódio?), mas, ao mesmo tempo, tem que lidar com contratempos de limpar (mais de uma vez) uma cena do crime, o que pode dar trabalho e ser frustrante. O gatinho Luccio (cujas pegadas de sangue são a única cor de toda série), é a testemunha que sobrevive.
A participação de Malkovich sugere a 2ª temporada
Uma das grandes surpresas de Ripley é a aparição rápida de John Malkovich como Reeves Minot, um personagem que ajuda o protagonista e que volta a aparecer em outros livros, um deles é justamente o Ripley’s Game, para criar ainda mais ironia.

E porquê achamos isso? Porque depois de se passar por Dickie por metade da história, Tom volta a usar sua identidade original e é descoberto por Ravini (Maurizio Lombardi), mas com a ajuda de Minot, muda de nome, cidade e país. A vestão oficial é que Dickie se matou. Marge quase se torna mais uma vítima de Tom e chega perto da verdade ao encontrar o anel do namorado morto, mas sem saber ao certo o que houve com ele, não revela nada para ninguém. Ou seja… caminho liberado para Tom, agora Timothy Fenshaw, termine a série indo para Inglaterra.
Eu espero que tenha mais!
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