No século 20, depois de Anna Pavlova a bailarina que mais popularizou a dança no mundo foi Alicia Markova. A bailarina e coréografa que circulou entre gênios como Diaghlev, Balanchine, Chagall, Matisse e muitos outros foi pioneira, celebridade, ousada e lendária desde cedo – e começou nova – estendo uma brilhante carreira até os 52 anos, passando outras quase quatro décadas ensinando.
Musa de coréografos, atores, músicos e pintores, Alicia faleceu em Londres no dia 2 de dezembro de 2004, aos 94 anos, deixando uma trajetória lendária e inspiradora para muitas gerações. Graças à ela a dança chegou à televisão, rodou o mundo e fortaleceu a escola inglesa.

Considerada uma das melhores Giselles de todos os tempos, Alicia merecia ter um filme sobre ela, ou uma série. Poucas viveram tão intensamente como ela, afinal foi a primeira primeira bailarina assoluta nascida na Inglaterra, a primeira judia, a primeira a aparecer na televisão (em 1932), a primeira primeira bailarina sem contrato fixo com uma companhia e a primeira a aparecer no palco apenas com uma malha sem tutu, um grande escândalo em 1925! Sim, Alicia Markova é uma lenda e a mais famosa de sua geração.
O nome russo para “disfarçar” o “Marks”
Filha de família judaica, Lilian Alicia Marks nasceu em Londres, em 1º de dezembro de 1910 sendo a mais velha de uma família de quatro filhas. Sua magreza tão reconhecida quando adulta veio de berço, era tão delicada que começou a dançar por recomendação médica para fortalecer as pernas frágeis.
A dança teve efeito, mas sua professora de balé identificou rapidamente que a pequena Lilian tinha dons excepcionais, era rápida para aprender, tecnicamente segura e era empenhada. Com apenas 10 anos fez sua estreia, já sendo apelidada de “a Pavlova criança”.
Diante da resposta forte, seus pais a matricularam em uma escola dirigida por uma das dançarinas dos Ballets Russes, a companhia de balé de Sergei Diaghilev, onde conheceu seu futuro parceiro, Anton Dolin, na verdade e na época ainda apenas Patrick Kay.

Antes de virar “Alicia”, a pequena Lily Marks foi ganhando destaque, mas a tragédia abalaria sua vida quando perdeu seu pai, em 1924, deixando as mulheres Marks com dificuldades financeiras e amigos ajudaram que a bailarina seguisse estudando.
Foi sorte porque logo depois sua professora chamou Diaghilev para ver seus alunos, já o alertando para observar Alicia. O empresário russo tinha tino para talentos e adorou a menina, a convidando para assistir a todas as apresentações dos Ballets Russes em Londres e a contratando imediatamente, mesmo que ela ainda tivesse apenas 14 anos. Conhecido por saber de marketing como poucos, Diaghilev considerou o nome “Marks” sem graça, trocando por “Markova” justamente para soar mais russo. “Quem pagaria para ver Alicia Marks?”, ele teria perguntado. Seja como for, com ele, mais uma estrela ímpar da dança nascia.
A bailarina bebê
Em 1925, acompanhada por uma governanta para protegê-la, Alicia Markova entrou para os Ballets Russes e foi viver em Monte Carlo, onde foi colocada aos cuidados de Ninette de Valois, com quem viria a trabalhar tantos anos depois para estabelecer o balé britânico. Jovem muito magra e de aparência frágil, ela se destacava rapidamente e passou a ser um projeto pessoal de Diaghlev (seu último).
Era tão pequena que nem no corpo de baile podia dançar, portanto tinha pequenos solos onde era possível encaixá-la. Mas o mais importante é que nos Ballets Russes, Alicia convivia com lendas como Pablo Picasso, Henri Matisse, Igor Stravinsky, Sergei Prokofiev, Léonide Massine, George Balanchine, Bronislava Nijinska e Alexandra Danilova.
Balanchine, que já começava a coreografar na época, foi quem fez a prova para Alicia entrar na companhia e passou a treiná-la pessoalmente, por isso muitos a consideram a primeira das bailarinas bebês que mais tarde seriam conhecidas. Foi para Alicia que ele criou o papel-título em Le Rossignol, de Stravinsky, fazendo da jovem bailarina uma sensação.

Os solos foram sendo mais frequentes, também dançou o papel-título em La Chatte, de Balanchine e solos como o da Princesa Florine no pas de deux do Pássaro Azul em A Bela Adormecida. Diaghlev estava empolgado com ela, anunciando que a colocaria no papel principal de Giselle, mas, sua morte em agosto de 1929, pareceu ser o fim de um lindo sonho para Alicia. Na verdade, ela estava apenas no prólogo.
Na Inglaterra, veio o estrelato
Com o fim dos Ballets Russes, Alicia Markova, Anton Dolin, Marie Rambert e Ninette de Valois voltaram para Inglaterra e quando Rambert e Ashley Dukes fundaram o Ballet Club, Mercury Theatre de Notting Hill, Alicia virou sua estrela. Ganhava pouco, mas estava sempre dançando e ganhando experiência. Sua leveza a ajudava a quase não fazer som mesmo em seus mais altos saltos, um padrão demandado para todas bailarinas desde então.
A parceria que estabeleceu com Frederick Ashton a transformou como sua musa e ele criou vários balés para ela. Em pouco tempo, passou a trabalhar com De Valois no Vic-Wells Ballet (hoje Royal), virando primeira bailarina em 1933, com apenas 23 anos. Foi no palco do Old Vic que finalmente fez sua estreia em Giselle, um ballet que viraria sua assinatura.

Depois do triunfo de Alicia como a camponesa trágica, veio o desafio de Odette-Odile, com uma superprodução de O Lago dos Cisnes montado especialmente para fazê-la brilhar, ao lado de Robert Helpmann, a maior estrela da companhia na época. Não apenas como uma das maiores do mundo, Alicia Markova foi a grande estrela britânica da dança, a mais famosa de todas até então, inspirando várias meninas a seguirem seus passos.

A ousadia de montar sua própria companhia aos 25 anos
Alicia Markova seria a primeira em muito mais do que uma companhia. Em 1935, ao lado de seu parceiro, Anton Dolin, formaram uma companhia deles e passaram a viajar por todo país, popularizando o balé no Reino Unido.
Em dois anos, o Ballet Markova-Dolin mantece um repertório de clássicos mesclados com peças modernas, ganhando elogios por onde passavam. Quando Leonide Massine assumiu o Ballet Russes de Monte Carlo, em 1938, Alicia deixou o empreendedorismo em segundo plano e retomou o projeto que tinha desenhado com Diaghilev, reencontrando sua melhor amiga, Alexandra Danilova, com quem passou a alternar os principais papéis da companhia.
Foi com o Ballet Russe de Monte Carlo que Markova se apresentou em Nova York pela primeira vez, e, com a Segunda Guerra Mundial dominando a Europa, passou os próximos anos viajando pelos Estados Unidos, tendo participado de filmes em Hollywood e viajanto até a América do Sul, onde se apresentou no Rio de Janeiro também.
Infelizmente a passagem pelo Rio foi marcada pela dor
Durante a viagem, cerca de apenas dez dias após o início, a perna de Markova começou a inchar muito, tanto que por recomendação médica ela precisou ficar imóvel e com a perna elevada, tentando lidar com a inflamação sem sucesso. “Eu tinha uma perna esquerda de madeira. Era como uma perna de piano”, ela escreveu em uma carta da época.
Quando chegaram ao Rio de Janeiro, a perna rígida e o calor dos trópicos causavam desmaios e muito cansaço. Com apenas um dia de ensaio e aula, Alicia se preparou para estrelar um trecho do Lago dos Cisnes, forçando justamente a perna inflamada. “[O] calor era uma agonia”, ela lembrou depois, “Sofri alguns dias depois de chegarmos lá com aquela perna.”

Anos depois, biógrafos mexendo em sua correspondência descobriram uma carta escrita 20 anos depois, onde a bailarina ainda citava a passagem pelo Rio com memórias de dor.
“Desde o Rio, às vezes sofri uma dor tão constante que foi quase insuportável. Ninguém jamais saberá o quanto sofri mental e fisicamente. Somente devido à minha fé e ao sentimento de que devo tentar e realizar o máximo possível para ajudar as pessoas e fazê-las felizes (já que o tempo é limitado para mim) me fez continuar”, escreveu em março de 1958.
A aposentadoria aos 52 anos
Quando retornou à Londres, em 1948, Alicia dançou como convidada do Sadler’s Wells Ballet na montagem de A Bela Adormecida, ao lado de Anton Dolin, sendo a primeira vez que dançaram ele completo (no Ballets Russes dançavam apenas o 3º ato). A dupla então fundou outra companhia própria, agora batizada como Festival Ballet, hoje o English National Ballet.


Como tinha como missão pessoal poder espalhar a Arte da Dança, a bailarina voltou a rodar o mundo, aparecer na TV, no rádio e em vários países até se aposentar, em 1963, com 52 anos. No mesmo ano, ela que já tinah sido nomeada CBE em 1958, passou a ser DBE, ainda em 1963, e no mesmo ano recebeu o Prêmio de Coroação Rainha Elizabeth II da Royal Academy of Dancing.
A aposentadoria só significou deixar os palcos, Alicia seguiu trabalhando com dança, mantendo um papel ativo na indústria da daça e do teatro como professora, diretora e coreógrafa. Amada e endeusada por onde passasse.
A recusa de plástica
A adoração por Alicia não a protegeu do anti-semitismo aqueles tempos, sendo que não era considerada “bonita” o suficiente por conta de seu nariz. Ela no entando, ignorou críticos e se manteve focada na Dança.
Alicia tinha orgulho de sua religião e se tornoua a primeira primeira bailarina assoluta abertamente judia do mundo, se negando a ceder às sugestões de plástica por causa de seu nariz “proeminente”. Markova recusou veementemente.

Inspirando artistas até sua morte
Há vários registros fotográficos, filmes e ensaios com Alicia Markova, assim como quadros e esculturas. Um dos mais famosos é o da Morte do Cisne, de 1949, por Vladimir Tretchikoff, onde ele a retrata em mais um papel que associam à ela.
O quadro fecha um ciclo para uma menina que foi comparada à Anna Pavlova, que também originou o A Morte do Cisne. Tretchikoff contou em sua autobiografia de 1973, Pigeon’s Luck, que viu Alicia pela primeira vez numa em turnê pela África do Sul, dançando justamente esse solo que, no quadro, coloca a bailarina entrelaçada com o cisne.


Há 20 anos, em 2004, Alicia sofreu um derrame, poucas semanas antes de completar 94 anos. Deixou um legado incomparável, com fãs até hoje sonhando com sua dança.
Fica aqui a homenagem à Diva e à Lenda da dança clássica: a grande Alicia Markova.
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