Em 1975 um artigo do escritor Truman Capote transformou sua vida ainda mais do que sua obra prima, À Sangue Frio, ou seu grande sucesso, A Bonequinha de Luxo. Em ambas as obras ele já tinha lidado com fatos reais, mas com Súplicas Atendidas (Answered Prayers) o autor não antecipou que tudo que o fazia ser adorado seria a sua ruína e a segunda temporada de Feud foca justamente nessa história.
Há 49 anos, não existia o termo “cancelamento”, mas foi o que Capote encarou quando usou os segredos íntimos de suas amigas milionárias como material de seu livro, onde nem se esforçou para disfarçar, provocando uma humilhação (e até suicídio) entre as vítimas, o que o levou ao isolamento social que o magoou profundamente. Na série da FX, que foi exibida nos Estados Unidos em março, mas apenas em maio de 2024 chegou à plataforma da Starplus, há Emmy escrito em todos episódios. Já era hora!

Contextualizando a série
Roteirizada pelo showrunner Ryan Murphy e dirigida por Gus Van Sant, Capote Versus Os Cisnes traz um grande elenco feminino – Diana Lane, Naomi Watts, Demi Moore, Jessica Lange, Calista Flockhart, e Chloë Sevigny – é o último trabalho de Treat Williams e claramente pode render um Emmy de Melhor Ator Drama para Tom Hollander como um Truman Capote perfeito. Em oito episódios, navegamos pela futilidade da alta sociedade americana assim como o declínio moral e de de saúde do escritor. É uma viagem intensa e muito emocionante.
Famoso por conta de seus livros, filmes e língua ferina, Truman era uma figura popular nos jantares e festas dos ricos nova iorquinos, um mundo que não fica distante do que se via nos anos do The Gilded Age, onde as conexões sociais e o luxo extremos eram excessivamente fascinantes para o escritor. Ele chamava suas amigas ricas, que o levavam para festas e almoços caros, de “Cisnes”, e elas ditavam tudo o que Nova York deveria ser. Babe Paley, Slim Keith, Lee Radziwill e C.Z. Guest, estava sempre nas listas das mais elegantes, eram copiadas e respeitadas pelas revistas de moda, alvos de fofocas e celebridades muito mais refinadas e misteriosas que artistas de cinema. Para conhecê-las melhor, leia meio post sobre os Cisnes.
Em uma narrativa não-linear, é preciso ter mais informações pesquisadas ANTES de começar a assistir pois o roteiro não considera os “não-iniciados” e, nessa roda, é preciso saber que a Rainha dos cisnes era a lendária socialite Babe Paley, um grande papel de Naomi Watts, mas muitos nomes conhecidos vão pipocar na tela.

Como começou o desentendimento?
Depois de À Sangue Frio, Truman Capote passou por um período que considerou de bloqueio criativo e, sob pressão, não antecipou que estava mexendo em um vespeiro quando decidiu fazer uma crônica sobre o mundo no qual estava circulando: uma fachada de perfeição, beleza e dinheiro que escondia traições, sexo, assassinato e muita infelicidade.
“Toda literatura é fofoca”, ele disse em uma entrevista. “O que é Anna Karenina, ou Guerra e Paz, ou Madame Bovary, senão fofoca?”, provocou. O problema é que seus leitores mais influentes rapidamente identificaram todas as inspirações para o livro, ainda mais porque Capote não fez questão de disfarçar ninguém. Ele não apenas ridicularizou pessoas que achavam que ele era seu amigo, como revelou segredos íntimos que se tornaram mais do que invasão de privacidade: era pura e maldosa traição.
Em meio ao caos que a publicação prévia de dois capítulos na revista Esquire causou, Capote foi banido das festas e do contato com seus “cisnes”, meio que sem entender as consequências de sua obra, criando todo o drama que a série explora com perfeição.
Grandes atuações, temas atuais e tentativa de analisar o que aconteceu
É impossível deixar de elogiar efusivamente a atuação de todos, em especial de Hollander como Capote. O autor vivia em filmes, programas de entrevistas e revistas, era uma celebridade conhecido ao redor do mundo por uma fala arrastada estranha, com voz fina e gestos bem exagerados e já foi interpretado por grandes atores, tendo rendido um Oscar para Philip Seymour Hoffmann, em2006.

Mordaz em textos precisos e diretos, Truman efetivamente cometeu um “erro” ao ser descuidado com suas inspirações, em especial no capítulo mais polêmico, o La Côte Basque, que era o restaurante mais badalado da época e o cenário de todo drama que ele testemunhou e gerou com seu livro.
Claro que o grande questionamento da série é justamente sobre esse engano, que ele se recusou a admitir e que efetivamente é complexo e de duplo padrão, afinal, ele contou a verdade e as pessoas não eram santas. Ele traiu a confiança de suas amigas, que não o perdoaram, mas quando elas mesmas traíam umas às outras não eram tão severas mutuamente. A recusa de Truman Capote de se desculpar ou justificar só piorou o quadro e no desenrolar do ‘cancelamento’, ele passou a beber ainda mais e usar remédios, uma combinação que encurtaria sua vida.



Ao longo dos oito episódios, Capote Versus Os Cisnes pondera sobre a hipocrisia e o esnobismo das pessoas que ele retratou com precisão em Súplicas Atendidas (Answered Prayers). Ryan Murphy faz questão de não proteger ninguém: tanto os Cisnes como Capote são fúteis, cínicos, cruéis e teimosos, sem admitir que embora ele tenha tornado público confidências que jamais seriam descobertas de outra forma, moralmente, ninguém estava apto a jogar a primeira pedra.
O fato de que Truman nunca foi perdoado em vida e que ele só demonstrava ter se arrependido de ter perdido a amizade e a confiança de Babe Paley, é de alguma forma “esticado” demais, eme especial quando Ryan Murphy nos revela o trauma de infância que justifica o deslumbramento e até a traição do escritor, sem dar o mesmo espaço para cada uma das mulheres que não são tão tridimensionais como ele. Há insinuação de racismo e homofobia, mas nesses momentos flerta com a misoginia também. Não atrapalha, mas pesa um pouco na mão.

O fato é que, sem a mesma explicação para cada um dos cisnes com a profundidade necessária, em geral podemos achar que a série meio que inverte a história, onde Truman Capote SEMPRE é tido como o agressor e traidor, como se porque elas eram ricas, famosas e vazias, “mereciam” serem expostas e ridicularizadas. Não, a série não chega a concluir nada nesse sentido, mas tampouco fica longe de uma crítica moral.
O fato é que mesmo que os Cisnes sejam hoje ultrapassadas e distantes de qualquer referência para juventude de mulheres, elas eram vítimas do machismo e misoginia (ainda hoje presentes) e isso não é ressaltado. Capote era fascinado por elas e sua descrição, mesmo que venenosa, é apurada. Não há como dizer que ele estava certo, afinal o que citou no livro não eram fatos públicos, mas segredos pessoais de vidas privadas, e ele jamais pediu autorização para usar como material para sua obra.
Mágoas profundas como causou, têm consequências e quando falamos de sentimentos há uma subjetividade que não pode ser ignorada. Há quem esqueça em cinco minutos assim como quem jamais confie ou perdoe novamente. Sendo assim, o único culpado pela dor era mesmo Truman Capote. Quase 50 anos depois, e 40 anos após sua morte, nos parece algo fácil de conciliar, mas, de novo, é prejudicial acusar as mulheres expostas como merecedoras de julgamento e ridicularização.
Um dos elementos mais emocionantes de Capote Versus Os Cisnes é justamente a atualidade ‘dessa’ discussão, muito mais descontrolada e intensificada com as redes sociais e reality shows. Vale conferir todos os minutos. E já ficou na torcida de qual será a próxima disputa (feud) que Murphy vai relembrar. Essa, mais do que a de Bette Davis e Joan Crawford é triste, é trágica e tão, mas tão difícil de apoiar. Uma tristeza que nos incomoda, mas também nos faz refletir.
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