Os “fatos” e versões da História em Westeros

Uma das qualidades do texto dos livros de George R. R. Martin está na maneira com que ele  “brinca” com o que entra para História como fato e como a verdade pode estar longe ou, se estiver perto, ainda assim, é um tanto diferente.  Fica ainda mais interessante porque o autor lida com fatos históricos em seu universo, criando um mundo ricamente detalhado e imersivo que reflete a complexidade de eventos históricos reais, ao mesmo tempo que incorpora elementos fantásticos.

Com uma extensa história de fundo para seu mundo, ele completa a trama com detalhes que se estendem por milhares de anos. Isto inclui a ascensão e queda de várias dinastias, batalhas significativas e intrigas políticas. A história de Westeros e Essos é meticulosamente elaborada, com referências a civilizações antigas, figuras lendárias e eventos históricos que moldam a narrativa atual.

As versões de cada um que reconta um fato podem influenciar como tudo é visto e é delicioso construir a sua própria percepção das coisas. Afinal, os narradores não são confiáveis, frequentemente todos os eventos históricos têm múltiplas perspectivas o que destaca a subjetividade da história. Os personagens podem ter interpretações diferentes do mesmo evento e os relatos históricos podem ser tendenciosos ou incompletos. Esta abordagem acrescenta profundidade à narrativa e reflete a ideia de que a história é muitas vezes escrita pelos vencedores, um eufemismo para lembrar que História é também Propaganda.

Em As Crônicas de Gelo e Fogo, a base de Game of Thrones, os livros eram na primeira pessoa, com os preconceitos e sentimentos de quem assinava o capítulo, mas, em Sangue e Fogo – a base de House of the Dragon – a trama é contada por um “historiador” o daria um distanciamento, mas o autor mescla testemunhos ou relatos de pessoas diferentes para concluir “o que aconteceu” e muitas vezes o que ficou como “oficial” é errado. Nós leitores nos divertimos desvendando a verdade porque todos têm uma agenda. Há espaço para ficarmos do lado que julgamos o melhor e questionar o que está nas páginas. Juro, mesmo que não goste de Dragões, Cavaleiros, Idade Média ou pura fantasia, por essa ótica sozinha já vale a pena conferir a obra. Isso porque a abordagem de Martin à história inclui um foco nas consequências realistas de ações e eventos e seus personagens enfrentam a dura realidade da guerra, das manobras políticas e da ambição pessoal e essa base no realismo torna a história mais atraente e compreensível, apesar de seus elementos fantásticos.

Um dos melhores exemplos é ver em Sangue e Fogo a narrativa de um rei Joffrey longe do monstro que vimos na série Game of Thrones e até Cersei descrita como outro tipo de regente que não a cruel e vingativa que sabemos que ela é. 

Se você esbarra com a defesa apaixonada dos fãs de um personagem ou outro é exatamente por essa dimensão da obra. Não há mocinhos perfeitos e embora existam psicopatas como Joffrey Baratheon e Ramsay Bolton, em geral e até com eles, é possível entendê-los. Nem toda série pode alegar conseguir o mesmo. 

Tudo isso chega em House of the Dragon com ainda maior maturidade, mesmo que muitos mal humorados puristas reclamem das “liberdades” que os roteiristas da série estão usando para recontar o período da guerra civil dos Targaryens. 

Mesmo em GOT o universo era tão cheio de personagens que demandou “eliminar” alguns e tomar emprestado suas histórias para outros. HOTD ainda não chegou lá, mas há rumores de que fará a mesma coisa.Por exemplo, não há menção de uma Sara Snow no elenco, tá parecendo que esse mistério com Jacaerys Velaryon ficará mesmo nas páginas do livro e não nas telas. Igualmente não parece que teremos Nettles, o que impacta a trajetória do casamento de Daemon e Rhaenyra. Na primeira temporada parecia terem eliminado um dos filhos de Alicent e Viserys, Daeron Targaryen, mas ao que parece ele vem aí na segunda fase. E por aí vai. 

Alterar a idade de Alicent para criar um drama maior com Rhaenyra me parece uma das alterações mais significativas que não acrescentou nada em termos de drama e pior, tirou a rivalidade entre irmãos de sangue, o que era o mais impactante da Dança dos Dragões. Virtualmente Rhaenyra e Aegon se ignoram, o ódio mútuo dos dois não tem o mesmo efeito na série como no livro. 

Porém a surpresa maior da estreia é a “primeira morte” da Guerra Civil, a de Lucaerys Velaryon. Na História oficial ele foi deliberadamente atacado por seu tio, Aemond, que o odiava por ter tirado seu olho quando ainda eram crianças. Na verdade, foi um mal entendido. Nem Aemond ou Luke conseguiram dominar seus dragões, com Vhagar, montada por Aemond, criando o impasse irreversível.

O ator Ewan Mitchell se despediu da gente no gancho para a segunda temporada com olhar de pânico, o oposto que esperaríamos do Aemond belicoso da literatura. Como ele mesmo disse, Aemond poderia voltar e admitir que errou, mas seu orgulho o fará mentir para fingir coragem e força. Portanto a História oficial foi criada em cima de uma deturpação dos fatos. Nós sabemos a verdade, Westeros não. Mais uma das qualidades de House of the Dragon, criar essa cumplicidade com seu público. 

E se Alicent genuinamente se enganou com o que Viserys quis dizer sobre “precisa ser Aegon” agora, ao que parece, Rhaenyra levará a fama de ter aprovado a vingança “um filho por um filho” sendo inocente dessa morte brutal de seu sobrinho. Será?

A Rhaneyra do livro é insegura, paranóica, super sedenta de poder e vingança, longe da doçura de Emma D’Arcy. O que eu não curto se for mesmo isso o fato de que todas guerra civil é movida por mal entendidos. Uma vez, ok. A segunda? Tá. Mas a terceira? Pode parecer até preguiçoso. Será que vamos nos surpreender?

Deixe um comentário