Por muitos anos, décadas até, filmes envelheciam, mas nem tanto quanto agora. Diante das mudanças culturais tão significativas dos últimos 15 anos, em especial os últimos 10, é bem complexo citar ou contextualizar os “clássicos” de Hollywood. Divas como Marlene Dietrich eram estrelas de filmes hoje risíveis do início ao fim, mas, há 88 anos a reação era completamente diferente. Um dos melhores exemplos é o filme O Jardim de Alá, de 1936.
A produção, vencedora do Oscar de fotografia, foi um dos primeiros filmes coloridos da história, um investimento de David O’Selznick de aproveitar a “nova” tecnologia e encantar platéias ao redor do mundo. E acertou: com o exotismo dos cenários do deserto de Marrocos e astros estrangeiros, Marlene era alemã e Charles Boyer, francês, o dramalhão era a terceira refilmagem de um best-seller da época, cujos dois filmes mudos antes da versão sonora e colorida já tinham sido sucesso. A música grandiosa de Max Steiner (mais tarde trabalharia com O’ Selznick em E O Vento Levou) foi indicado ao Oscar também, mas não ganhou. Tudo parece um grande ensaio para o filme que faria história três anos depois, justamente E O Vento Levou.

É simplesmente inacreditável hoje entender como as críticas do lançamento de O Jardim de Alá foram tão positivas. No Brasil, foi tanto sucesso que o canal que separa Ipanema do Leblon foi batizado com o nome do filme, que tal? A Newsweek disse que Boyer e Dietrich deram a performance de suas carreiras (Deus!) e o New York Times e o descreveu como um “filme entusiasticamente atuado”. Exagero é o que melhor define o conjunto da obra.
Na literatura: religião e exotismo determinando a história
O romance original, de Robert Hichens, foi publicado pela primeira vez em 1904e fez grande sucesso comercial por trazer questões de exotismo, misticismo, erotismo e Fé. A história acompanha uma jovem inglesa, Domini Enfilden, que viaja para o Norte da África para escapar de seu passado conturbado e encontrar renovação espiritual. Rica, mas solitária, ela se sente insatisfeita e busca um significado mais profundo na vida, apostando que a paisagem exótica e austera lhe proporcione o consolo e o despertar espiritual que ela deseja.
No deserto, Domini conhece Boris Androvsky, um homem com um passado misterioso que também busca redenção e um novo começo. O que ela não imagina é que Boris é um ex-monge que abandonou seus votos e é atormentado pela culpa e conflito interno. Ainda assim, eles se apaixonam e decidem se casar.
A relação, inicialmente feliz, tem uma ameaça constante por causa do segredo entre eles. Quando Boris é forçado a confrontar a verdade, o amor dos dois é ameaçado. Isso porque a luta interna de Boris sobre sua fé e desejos impedem que a relação seja plena. O fato dele ter abandonado os votos religiosos cria um conflito moral e espiritual para Domini, que valoriza profundamente sua fé e a santidade dos compromissos religiosos. “Por amor” a Deus e a ele, ela sacrifica sua felicidade para que ele busque a redenção em seus próprios termos, sem a interferência dela, o que significa – PASMEM – voltar para o Monastério.

A proposta da história é que a decisão de Domini de se separar de Boris, mesmo omitindo estar grávida (no filme isso não está claro), seja um reconhecimento da jornada transformadora pela qual ambos passaram e que o tempo que passaram juntos no deserto tenha sido apenas um período de intenso crescimento emocional e espiritual. Portanto, se separarem simboliza o ápice dessa jornada e o início de um novo capítulo em suas vidas. Hoje é simplesmente um drama absurdo e inexistente.
No livro de Hichens, Boris Androvsky retorna ao monastério por sua culpa pessoal, crise espiritual e busca por expiação. Apesar de feliz com Domini, ele “sente” que traiu seus votos e que precisa retomar seus deveres religiosos para alcançar o perdão. Fico perdida de como explicar o inexplicável, desculpem, mas é essa complexa interação de culpa, redenção e busca por significado espiritual que o autor se propôs discutir, infelizmente, com uma alternativa conformista e conservadora, onde a mulher é a tentação e é deixada sozinha.
Com o sucesso, peças e filmes eternizaram o livro
Em 2024, o livro O Jardim de Alá completou 120 anos e graças à Deus está tão desafinado com os tempos atuais. Em 1904, foi tão bem recebido que foi adaptado para dois filmes antes do cinema falado, onde ganhou sua terceira e última versão e ainda foi transformado em uma peça de teatro na Broadway.
Quando David O’Selznick criou sua produtora, foi o segundo filme que decidiu produzir e já em technicolor. O projeto original era para ser estrelado Merle Oberon, e chegou a ser considerado um veículo para Joan Crawford, mas ele conseguiu a estrela da hora, Marlene Dietrich, que foi “emprestada” pela Paramount para o projeto.
A atriz, que tem um verdadeiro desfile ao longo dos 120 minutos do filme, antipatizava com o produtor e estava irritada com o roteiro que considerou fraco. (Ela sempre foi inteligente!) Reclamou quantas vezes repetiam a frase “só Deus sabe o que está no meu coração”, mas O’Selznick considerava suas observações apenas um reflexo de uma insegurança quanto à sua aparência. Selznick ficou angustiado com a aparência perfeita da atriz em todas as cenas, com roupas impossíveis de serem levadas para o deserto no Norte da África assim como nunca estar despenteada ou suja, mesmo em uma tempestade de vento. Ele tentou trazer um pingo de realismo, mas em vão. Imaginem o clima?
Curiosamente, antes de fechar com Boyer, atores entre outros como Robert Taylor, Laurence Olivier, Robert Donat, Jean Gabin, Ivor Novello, John Gielgud, Vicent Price e até Basil Rathbone (que está em outro papel na versão final), foram testados para o papel de Boris, sendo que David Nive, Cesar Romero e Ray Milland também foram considerados para o papel de De Trevignac, que ficou com Alan Marshal.

As gravações no deserto de Yuma, Arizona, em temperaturas acima de 45 graus Celsius só pioravam as tensões, mas o resultado foi de sucesso absoluto. Hoje, O Jardim de Alá representa exatamente o tipo de filme ultrapassado, criado para ressaltar o glamour de sua estrela em detrimento da história. Cafona, exagerado, risível, mas tecnicamente brilhante.
A fotografia e iluminação premiadas de Harold Rosson e W. Howard Greene ainda são incríveis, combinando a técnica do preto e branco com a tecnologia inovadora da cor. Marlene Dietrich, vamos avisar, nunca esteve tão linda como está nesse filme.
Cyndi Lauper ajudou a reavivar o filme
Há 40 anos, quando o lindo vídeo para Time After Time chegou à MTV, a introdução é justamente com uma longa e romântica cena de O Jardim de Alá, quando Charles Boyer se despede de Marlene Dietrich e Cyndi faz a sincronização labial com todo o diálogo, que ganham força dramática assim que ela desliga a televisão e começa a cantar o seu clássico.

“Eu me decidi”, ouvimos Boyer dizendo, “Eu vou embora”. “Então eu ficarei sozinha”, Dietrich responde. “Aquela viagem ao deserto que uma vez você me falou, você a fará sozinha?”, ele pergunta. “O que mais posso fazer?”, responde olhando para o além. ” Uma vez você me disse que Paz e Felicidade poderiam ser encontradas lá. Você me deu esperança, mas agora devemos dizer Adeus”, ele explica com Cyndi exagerando a dublagem. “Adeus”, ouvimos Dietrich.
Graças a esses poucos segundos de reprodução, o filme de 1936 ficou eternizado na cultura pop de forma simples e direta, sem que as novas gerações tenham efetivamente o visto completo.
Vale a pena? Sim, se você for um apaixonado pela Sétima Arte. Com todas as ressalvas já apresentadas.
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