Se imaginarmos que no Brasil a Lei Maria da Penha tem menos de 20 anos e que abuso doméstico era tabu ao redor do mundo, o filme para TV, Cama Ardente tinha todos os elementos de chocar o público em 1984. Trazendo a estrela Farrah Fawcett, conhecida por sua beleza e filmes leves, no papel dramático de uma mulher vítima de violência foi absolutamente chocante.
O lançamento de É Assim Que Acaba (It Ends With Us) nos cinemas reacende o fórum ainda delicado sobre como retratar e lidar com questões abuso. O filme estrelado por Blake Lively não é uma história real, assim como foi a série Big Little Lies, é ficção, mas sua história não poderia deixar de ser mais verdadeira.


O cinema perdeu a oportunidade de endereçar a complexidade em tornos da violência doméstica inúmeras vezes. Sim, está em A Cor Púrpura, de 1985, mas não era o tema central. Nunca sem Minha Filha, de 1991 também tinha algo, mas queria focar mais na religião e Tomates Verdes Fritos, do mesmo ano, também usou a violência doméstica como pano de fundo, não o tema principal. Apenas Dormindo com o Inimigo, de 1995, trazia Julia Roberts em um filme que era para denunciar as relações abusivas e violentas, mas, como típico daquela década, transformou o drama em thriller com direito a final feliz depois de assassinar o marido. Sabemos que a realidade é bem mais traumática e menos feliz do que isso.
Com tudo isso, é de se pensar ainda mais no que significou, há 40 anos, a rede NBC investir em Cama Ardente e exibir o filme. Era, afinal uma história de true crime e isso sempre deu audiência. Não é fácil encontrar o filme nas plataformas, o que não impede relembrá-lo.
Antes do filme, o livro sobre um crime real
Cama Ardente, tradução do original, Burning Bed, é a história de Francine Hughes, uma espécie de inspiração para Lorena Bobbitt, que passou por 13 anos de abuso e violência doméstica até um dia atear fogo na cama em que seu marido dormia (daí o título). A história chocou o mundo e virou um livro, escrito por Faith McNulty e lançado em 1980, que é a base do filme.
O caso de Francine, uma dona de casa de Michigan, virou um caso legal jurídico histórico porque chamou, pela primeira vez, a atenção para a questão da violência doméstica nos Estados Unidos. O incidente ocorreu em 9 de março de 1977, quando depois ser violentada e agredida, Francine chegou a um ponto de ruptura mental. Ela alegou como defesa insanidade temporária, algo que era inédito. Antes desse caso, a conversa nacional sobre violência doméstica era considerada um assunto privado e o público ficou chocado com a extensão do abuso que Francine havia sofrido e as medidas drásticas que ela se sentiu compelida a tomar.
Como vemos no filme, Francine conheceu Mickey quando tinha apenas 16 anos e se casou rapidamente com ele, no auge da paixão. Não demorou para que ele começasse a demonstrar sinais de ciúme e raiva, abusando fisicamente dela, inclusive na presença de seus pais, mas ela ainda acreditava quando ele se desculpava.

Ao longo dos anos, a intensidade e a frequência dos abusos aumentaram, piorados pelo alcoolismo de Mickey. Em determinado momento ela consegue o divórcio e a custódia dos três filhos, mas, quando ele se envolve em um acidente de carro e fica gravemente ferido, Francine concorda em cuidar dele temporariamente na casa de seus pais e fica, literalmente, presa com ele novamente.
Passando os anos, mais resignada, Francine volta a estudar e isso irrita o sempre agressivo Mickey. Sem a ajuda da polícia, dos tribunais de família ou até da família do marido, ela vai percebendo que seu risco de morrer é cada dia mais real. No dia do crime, Mickey, bêbado, demandou mais uma vez que ela deixasse os estudos e destruiu seus livros escolares, a forçando a queimá-los. Em seguida, bateu nela, humilhou e a violentou. Adormecido e ainda bêbado, Mickey ficou na cama. Francine, sem pensar, foi até a garagem, pegou uma lata de gasolina e despejou sobre o corpo do apagado Mickey, acendendo o fósforo e fugindo em seguida, com os filhos, direto para a delegacia. A casa foi engolida pelas chamas e Mickey morreu no local.
No julgamento, depois de ouvir os relatos de Frances, o júri concordou no estado de insanidade temporária e ela ganhou a liberdade.
O filme com uma estrela inesperada
O sucesso do livro e a popularidade do caso, naturalmente foram incentivos para a NBC investir numa adaptação para TV, no caso, um filme feito para o meio (o cinema na época nem chegava perto do tema). A estrela de As Panteras, Cheryl Ladd foi convidada para o papel principal, mas declinou e, curiosamente, foi sua antecessora na série, Farrah Fawcett, que aceitou interpretar Francine Hughes.
A atuação elogiada de Farrah, indicada ao Emmy, colocou seu rosto associado à causa e até hoje quando falamos da atriz, falamos de Cama Ardente. O filme foi exibido em outubro de 1984 e liderou a audiência nos Estados Unidos, sendo vendido e exibido em vários canais internacionais também. Foi, notoriamente, o primeiro filme para televisão a fornecer um número nacional 800 como ajuda a outras pessoas na mesma situação.

A polêmica em torno do caso, como vemos, ainda existe, mas Cama Ardente foi uma narrativa poderosa que trouxe atenção significativa à questão da violência doméstica e continua sendo um exemplo pungente das consequências terríveis do abuso descontrolado e da necessidade urgente de mudanças sociais e legais para proteger as vítimas. Um assunto ainda atual e urgente.
*Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006): Um marco na luta contra a violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil, estabelece que todo o caso de violência doméstica e intrafamiliar é crime, deve ser apurado através de inquérito policial e ser remetido ao Ministério Público. A lei também tipifica as situações de violência doméstica, proíbe a aplicação de penas pecuniárias aos agressores, amplia a pena de um para até três anos de prisão e determina o encaminhamento das mulheres em situação de violência, assim como de seus dependentes, a programas e serviços de proteção e de assistência social. O nome da lei é em homenagem à mulher cujo marido tentou matá-la duas vezes e que desde então se dedica à causa do combate à violência contra as mulheres.
A Lei Maria da Penha dá cumprimento à Convenção para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Convenção de Belém do Pará, da Organização dos Estados Americanos (OEA), ratificada pelo Brasil em 1994, e à Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), da Organização das Nações Unidas (ONU)
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