Ária Vissi D’Arte: Emoção e Maestria na Interpretação de Maria Callas em Tosca

Na peça Masterclass, de 1995, o dramaturgo americano Terrence McNally criou um cenário perfeito para conhecermos Maria Callas. Inspirado em fatos reais, o soprano deu algumas aulas em Nova York depois de estar aposentada dos palcos, ele criou uma história onde Maria é uma professora autoritária, mas paradoxalmente frágil. Diante de alunos que a fazem refletir sobre sua Arte, seu Talento e sua Vida, ela navega por lembranças dolorosas e reveladoras sobre sua carreira e também sua vida pessoal. Curiosamente, nunca a ouvimos cantar (apenas os pupilos) e as árias mais famosas são pano de fundo instrumental para o drama.

Eu vi Patti Lupone como Maria Callas, no Brasil tivemos Marília Pêra em uma atuação magnífica e, em Paris, Fanny Ardant foidirigida por Roman Polanski, antes de estrelar como o soprano no filme Callas Para Sempre, em 2001, dirigida por Franco Zeffirelli.

Em todas essas oportunidades ninguém ousou o que Pablo Larraín decidiu com Angelina Jolie em Maria: pedir que as atrizes cantassem. A Voz de Callas, conhecida como La Divina, é marcante e distinta de todas, é quase uma heresia pedir que alguém tente imitá-la. No caso de Maria, Angelina não vai “cantar” tudo: ela usa sua voz e é mesclada com a de Callas para dar veracidade à cena, sendo que, quando o soprano “perde” sua habilidade, a da atriz ganhará maior relevância. Faz sentido.

Maria não é uma adaptação de Masterclass, mas segue o mesmo conceito da peça. Nos palcos, a narrativa culmina com a ária mais associada à Callas, Vissi D’Arte, em um monólogo emocionante sobre o sacrifício feito em nome da arte que é cantada na ópera Tosca. Sem dúvida, teremos esse momento dramático no filme.

A origem de Vissi D’Arte

Composta por Giacomo Puccini para o segundo ato da ópera, Vissi D’Arte é cantada pela personagem principal, Floria Tosca. Na história, Tosca é uma cantora de ópera apaixonada pelo pintor Mario Cavaradossi que foi preso pelo chefe de polícia, Barão Scarpia, que deseja Tosca para si. Scarpia oferece a liberdade de Cavaradossi em troca dos favores sexuais de Tosca. Desesperada e em conflito, Tosca canta “Vissi d’arte” como uma súplica ao céu, questionando por que está sendo punida apesar de ter vivido sua vida dedicada à arte e à fé.

A letra da ária reflete sua angústia e perplexidade diante de sua situação e diz “Vivi para a arte, vivi para o amor, nunca fiz mal a uma alma viva!”, ela começa, fechando com a trágica súplica, “Na hora da dor, por que, por que, Senhor, por que me recompensas assim?”

A ária expressa a profunda dor e a sensação de injustiça e, ebora Puccini quase a tenha eliminado por achar que tira o ritmo da história, é um dos momentos mais emocionantes e memoráveis da ópera.

Tosca tem três atos e é baseada na peça “La Tosca”, de Victorien Sardou. Estreou em 1900 e ainda hoje é uma das mais populares do universo clássico. Foi a quinta peça composta pelo italiano, um dos mais hábeis em mesclar dramas grandiosos em música. Essa é considerada uma de seus melhores trabalhos, afinal Tosca é – ela mesma – uma grande cantora de ópera

A criação de “Tosca” passou por várias fases de desenvolvimento. Puccini foi atraído pela peça de Sardou devido ao seu potencial dramático e à complexidade emocional dos personagens. Ele trabalhou intensamente com seus libretistas, Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, para adaptar a peça ao formato de ópera. O processo de adaptação envolveu muita negociação e reescrita para garantir que a narrativa fosse coesa e eficaz no palco operístico.

Vissi d’arte foi escrito para a protagonista, como um lamento introspectivo e emocional, destacando a vulnerabilidade e a humanidade de Tosca e pensada para capturar a essência da personagem em um momento de crise. A melodia é lírica e expressiva, complementada por uma harmonia rica que enfatiza o desespero e a paixão de Tosca. A estrutura musical da ária permite que a soprano demonstre tanto habilidade técnica quanto profundidade emocional.

Esta ária é um exemplo perfeito da habilidade de Puccini em combinar texto e música para criar um momento de profundo impacto emocional, tanto para a personagem quanto para o público.

A associação entre Callas e Tosca

De todas grandes intérpretes do papel, Maria Callas é mais frequentemente associada à ária Vissi d’arte do que as demais, graças à sua interpretação icônica e profundamente emocional dessa peça. Callas, um dos sopranos mais renomados do século 20, era conhecida por sua habilidade de transmitir emoções intensas e complexas através de sua voz e atuação, o que fez dela uma intérprete ideal para o papel de Tosca.

Além disso, Vissi d’arte é uma ária extremamente desafiadora do ponto de vista técnico e emocional demandando controle vocal e a habilidade de capturar a essência da personagem, algo que ela fez de forma lendária.

Um dos traços mais reconhecidos de Callas foi sua habilidade única de infundir cada nota com uma carga emocional intensa, nesse caso, fazendo com que o público sentisse o sofrimento e a angústia de Tosca. Além disso, quando estava no auge, a técnica vocal de Callas era impecável e ela navegava pelas exigências técnicas da ária com aparente facilidade, ao mesmo tempo em que mantinha a clareza e a beleza do som. Se não bastasse isso tudo, ela era uma atriz talentosa que trazia uma presença cênica poderosa para cada performance, tornando suas interpretações memoráveis.

Por sorte, temos gravações de várias interpretações de Callas cantando Vissi d’arte – em áudio e vídeo – e ela são referências para cantores de ópera e amantes da música ainda hoje, no século 21. O registro mais famoso foi a apresentação há 60 anos, no Covent Garden, gravada em 1964. Essa performance de Vissi d’arte foi aclamada pela crítica e pelo público como uma das maiores interpretações dessa ária de todos os tempos, mas há quem defenda que a versão de 1953 seja a mais perfeita. Callas – para mim – nunca tem erro.

A precisão melódica e técnica de Vissi D’Arte transformaram a ária em uma peça quase independente de Tosca, um momento de ousadia e até exibicionismo de sopranos nos palcos. Mas, nenhum se igualou à Maria Callas.


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