No universo polarizado que vivemos, a “surpresa” da vitória no Emmy Awards 2024 de Hacks sobre O Urso virou a piada da semana, com pessoas celebrando a queda do grande queridinho até então. Mas peraí, é para detestar O Urso e amar Hacks? O que fazer quando se aprecia igualmente as duas? Já tinha falado mais de uma vez aqui: o favoritismo de O Urso iria se voltar contra a série. Não sou Nostradamus, é que era uma piada ensaiada.


A série da FX, que fica na plataforma da Disney Plus fora dos Estados Unidos, veio como um cometa em 2023, tirando a esperança de Abbot Elementary, uma comédia da ABC que vinha colecionando todos os prêmios na categoria de comédia até esbarrar com Ted Lasso. Desde o início, porém, houve estranhamento. Enquanto a série sobre a escola em um bairro carente da Philadelphia seguia o formato de The Office e é uma comédia clássica, a história de O Urso é extremamente dramática, densa, e envolve temas como suicídio, depressão, dependência química e assédio moral, todos temas tratados com sensibilidade e profundidade.
Comédia dramática então? Nem isso, porque momentos de “riso”, como o de quando crianças são acidentalmente dopadas em uma festa, são desafiadores de serem considerados engraçados. Em geral, não há exatamente um alívio cômico em nenhum episódio até a 3ª temporada, e mesmo assim, ficou forçado. Ainda assim, por conta das regras da Academia, conteúdos de até meia-hora entram na categoria de Comédia (que preconceito!) e com isso, nos últimos dois anos o elenco de Abbot Elementary passou a trabalhar arduamente da expressão de bons perdedores, sem nos convencer, pois estávamos igualmente confusos.
O Urso, como comédia, conseguiu dois feitos: não bateu de frente com o domínio de Succession ou The Crown, as duas séries dramáticas mais premiadas e que estavam em produção quando o chef chegou às plataformas e virou darling do público e da crítica. O Urso seguiu os passos de Fleabag. Só que, Fleabag, como Hacks, era de fato uma comédia dramática. O estranhamento só veio crescendo.


Não é culpa dos atores ou dos roteiristas de O Urso que o jogo seja confuso. The White Lotus, que está no campo cinzento de “dramédia” entrou no primeiro ano das premiações como Comédia e passou para Drama. E tem mais exemplos: Orange is The New Black esteve como comédia entre 2015 até 2019, só passando para Drama em 2020.
A FX poderia ter seguido o exemplo e mudado o gênero esse ano, especialmente porque não estaria mais sob a ameaça de Succession, que merecidamente levava todos os prêmios. Porém, se fizesse isso, teria dois títulos seus disputando prêmios, sem poder assegurar a vitória para ambos. Estou falando de Shogun, que nasceu como Série Limitada Drama e, ao ter uma segunda temporada, passou para série Drama no ano mais fácil de qualquer vitória na categoria. Não quero diminuir a qualidade e o mérito de Shogun, mas estava superior à concorrência e dividiria os votos se tivesse que brigar com O Urso. Mas os votantes estavam atentos. Era a hora de premiar Hacks.


Quando estreou, em 2021, Hacks me surpreendeu. Ácida, inesperada e inspirada em personagens reais (livremente, claro), colocou como protagonista a sensacional Jean Smart, na época com 69 anos. Era um momento no qual a terceira idade estava se provando ainda em forma porque tínhamos Grace e Frankie com Jane Fonda e Lily Tomlin assim como o Método Kominsky, com Michael Douglas e Alan Arkin.
Jean ganhou todos os prêmios, inclusive o Emmy de Melhor Atriz, mas a série foi ficando no caminho. No primeiro ano encarou o favoritismo de Ted Lasso (que ganhou) e tinha na categoria de comédia: Cobra Kai, Emily In Paris, Pen15, e The Flight Attendant. Em 2022, os concorrentes de comédia eram Abbott Elementary, Barry, Curb Your Enthusiasm, The Marvelous Mrs. Maisel, What We Do In The Shadows e Only Murders In The Building, todos derrrotados por Lasso. Em 2023 Hacks estava fora do ar e voltou agora, para competir em 2024.
Se olharmos com carinho, a categoria de Comédia sempre tem um estranho no ninho que faz mais chorar do que rir, mas, em geral, há risos em algum momento. A vitória de Hacks, que tem um time de showrunners extremamente jovem em contraste à protagonista, une os públicos tão opostos de todas plataformas, mas, de longe, não tem a popularidade ou o prestígio que O Urso alcançou. Como sou público alvo, fui impactada desde a estreia e venho falando da série e de Jean Smart como um disco arranhado, nas minhas colunas de CLAUDIA, Correio do Estado e aqui no blog. E sei que estou sozinha porque poucos tinham descoberto essa pérola.


Ter tido Hacks competindo com The Marvelous Mrs. Maisel por dois anos foi algo incrível pois são basicamente a mesma história, inspiradas nas mesmas personagens reais e com pegadas tão diferentes. E confesso, não curti a terceira temporada como as duas primeiras, considerei que o conflito estava resolvido nas duas iniciais, mas estou revendo a minha posição. Voltarei à assisti-la, para confirmar se estava certa. Parece que não, né?
O fato é que quando se trata de prêmios, nem sempre o mérito é o suficiente. Diferenciar o que é comédia e o que é drama pode ser desafiador. O que não nos obriga a falar mal de O Urso. Só nos faz celebrar que, embora nem sempre as regras sejam justas, o jogo só está ganho quando acaba.
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