A guerra dos puristas: nas adaptações, quem está certo?

Vivemos em tempos curiosos onde ódio e amor se alternam na velocidade da luz. Vejamos a volta por cima da série Anéis de Poder, que está liderando um novo movimento online de defensores reclamando dos haters. Na sua estreia, a decepção foi quase unânime, por isso os elogios têm sido alvo de tanta discussão.

Sem dúvida os grupos se dividem entre os “Puristas”, que são os que leram todos os livros, que massacram a produção e sua “liberdade criativa”, reclamando a cada cena e destruindo a série como ruim, e os “não iniciados”, que só conhecem os filmes de Peter Jackson. Tem até quem não leu Tolkien e não viu os filmes (que já têm mais de 20 anos), portanto, nessa guerra de opiniões: quem está certo?

Não é de hoje que a máxima que um livro jamais é bem adaptado para o cinema é dita. E faz sentido, afinal, ao ler o que está nas páginas, mesmo que descrita em detalhes pelo autor, a imaginação de cada um terá uma imagem que jamais será a mesma que a de outra pessoa.

Sim, há um consenso comum, mas, quando todos têm voz para externar descontentamento, que é o que acontece hoje com as redes sociais, ninguém está apenas certo ou errado. Me coloco à frente como exemplo porque detesto a Galadriel de Anéis do Poder e, mesmo que não esteja sozinha na crítica, não sou dona da verdade. Tem quem goste dela assim.

Tenho amigos que viram falhas sérias na adaptação (que considero perfeita) de O Senhor dos Anéis, pois os filmes excluem a invasão dos Orcs e luta do Hobbits pelo Shire, entre várias outras ‘liberdades’. Não posso dizer que fez falta, mas paradoxalmente não nego que era importante.


Outra série que comprova que popularidade não é tudo é House of the Dragon. Tratada como maravilhosa pelos fãs, a alteração feita em relação à passagem de Sangue e Queijo que no livro era bem mais violenta e tinha uma personagem eliminada da história tirou até o autor, George R. R. Martin do sério. Hoje ele elogia a futura Um Cavaleiro dos Sete Reinos, que ainda não estreou, mas precisamos lembrar que em parte por conta dele não ter terminado a obra até hoje, Game of Thrones historicamente passou a ser lembrada tanto pelo fenômeno de público como pelo final pífio nas telas.

Mas podemos voltar 75 anos ou mais e veremos que sempre que o livro vira audiovisual, há fãs para reclamar do que está na tela. Vidas Amargas (East of Eden), que será refilmado, exclui do cinema a trajetória de Cathy Ames porque era uma mulher sociopata e sexualizada.

E O Vento Levou, para não deixar claro que Scarlett O’Hara tinha relações sexuais com os maridos excluiu dois filhos que também eram importantes na trama, deixando a única menina que teve, Bonnie, porque era do casamento com Rhett Buttler. Mais recentemente, embora bem sucedido e visualmente estonteante, até Duna tem seus detratores.

Se seguir, a lista é longa.

A diferença hoje em dia está nas redes sociais. As bilheterias e audiência não sofriam tanta influência – quase pressão – como atualmente, para o bem ou para o mal. A avaliação do sucesso de uma obra leva em consideração se a negatividade gera uma mobilização significativa provocando cancelamento ou resgate da produção. Sim, vimos séries de duas temporadas ou até única, como Becoming Elizabeth saírem do ar por falta de público e há também as massacradas pela crítica.

Sim, quando falamos de ‘puristas’ também incluímos aí leitores de quadrinhos. Os ‘nerds’ ou ‘geeks’ que reclamam ou elogiam cada spin off ou refilmagem da DC Comics, Star Wars ou da Marvel. Há canais e canais no Youtube que sobrevivem com esse material.

Os games também fazem parte desse cenário. The Last Of Us, que tem sido tão fiel ao jogo que está quase covardemente seguro. Nesse caso, embora o número de pessoas que tenham o jogo seja grande, jamais será o suficiente para equiparar com o sucesso de livros ou revistas, assim a série pode ser fiel pois há um número maior de pessoas que nunca ouviram falar na história ali apresentada.

Por isso é minimamente curioso que a conclusão da segunda temporada de Anéis de Poder, sob elogios empolgados pela clara melhora narrativa esteja despertando um movimento entre puristas e novatos.

“A segunda temporada de Anéis de Poder foi genuinamente fenomenal. É exatamente o que eu esperava. Fico triste que a série não esteja recebendo o amor que merece. É linda. Não quero dar spoilers, mas adorei os últimos episódios em particular”, diz um no Threads.

“Com Anéis de Poder os fãs de Senhor dos Anéis estão se tornando tóxicos como os fãs de Star Wars. Vamos lá, pessoal, nós costumávamos ser o fandom bom. Se você não gosta, tudo bem, mas, por favor, relaxe sobre isso”, pede outro.

Entre os sempre críticos, os argumentos sempre passeiam por seis temas, geralmente combinadas entre si:

Fidelidade ao Texto Original: Muitos leitores ficam desapontados quando as adaptações não seguem fielmente a história ou os personagens do livro. Alterações significativas na trama ou na personalidade dos personagens podem ser frustrantes.

Omissão de Detalhes: Livros frequentemente contêm detalhes ricos e subtramas que podem ser difíceis de capturar em uma adaptação mais curta. Isso pode fazer com que os leitores sintam que elementos importantes da história foram deixados de fora.

Interpretação dos Personagens: A maneira como os atores interpretam os personagens pode não corresponder à imagem que os leitores tinham em mente. Isso pode ser especialmente problemático se a aparência ou o comportamento dos personagens diferirem significativamente do que é descrito no livro.

Mudanças no Enredo: Às vezes, os enredos são alterados para melhor se adequar ao formato visual ou para atender a um público mais amplo, o que pode resultar em mudanças que não agradam aos fãs do livro.

Foco Diferente: Adaptações podem focar em aspectos diferentes da história em comparação aos livros, enfatizando cenas de ação ou romance, por exemplo, em detrimento de reflexões internas ou temas mais sutis.

Ritmo e Pacing: O ritmo de um filme ou série pode ser muito diferente do livro. O que pode ser uma narrativa lenta e introspectiva em um livro pode ser transformado em uma versão mais rápida e menos detalhada na tela.

Seria fácil, levando isso tudo em consideração, simplificar que os puristas lutam pela integridade da obra quando quando a obra é adaptada para outro meio em geral permitem que as histórias alcancem um público mais amplo, apenas para começar. O cinema e a TV também oferecem uma interpretação visual e auditiva, trazendo elementos como cenários, figurinos, música e efeitos sonoros que podem enriquecer a narrativa. Por exemplo, a trilha sonora pode evocar emoções de maneira poderosa, enquanto os visuais podem dar vida a mundos imaginários de forma vibrante. Para mim, certamente é o caso.

Há também a oportunidade de atualizar histórias antigas para torná-las mais relevantes para o público contemporâneo, ajustando contextos culturais, sociais e políticos ou explorar temas de maneiras novas e significativas. Onde, claro, existe outra armadilha. O elenco multiracial de Bridgerton foi bem aceito, mas nem sempre o anacronismo funciona, como The Buccaneers vem mostrando.

Outro derrape em tentar mudar o que altera a obra em sua essência foi a versão de Persuasão mudando significativamente a personalidade da protagonista ou mesmo séries como Vikings mudando fatos históricos para ajudar na narrativa. A Rainha Serpente colocou pessoas que nunca se encontraram em uma mesma sala e The Great alterou um ódio mortal em história de amor. Até onde a liberdade artística é permitida?

Em tempos nos quais ainda mais do que revisitar clássicos a aposta mais constante é na biografia, lidar com anacronismos pode ser um desafio interessante e criativo. Lembrando que por sua essência, anacronismos ocorrem quando elementos de uma época são colocados em um contexto histórico diferente, mas que confundem o público a saber o que é – de fato – real. Mesmo que anacronismos tenham sido utilizados simbolicamente para destacar temas universais ou atemporais da história.

Ou seja, diante de tudo isso, a defesa dos fãs de Anéis de Poder ganha outra ótica e pode começar novos movimentos. Democracia deveria sempre ser abraçada, se gosta mais do livro não deveria estragar o filme ou a série, há espaço para todos. A questão, parece, mais do que ter opções ou voz é impor “verdades”. Os algoritmos elevaram a necessidade binária a outro nível e se a série fizer sucesso, os puristas quase encaram isso como derrota.

No caso de Tolkien ou até mesmo de Martin, admito, não sou purista e não tenho problemas com isso. Ainda sobre a série da Amazon Prime Video, achei boa, acompanho e melhorou, mesmo ainda longe de ser algo que flerte com o hall de inesquecível. Nem por isso merece ódio virtual. Se estivemos incitando mais conhecimento e curiosidade, isso nunca pode ser ruim. Não acha?



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