Quando falamos de Imitação da Vida, em geral, as pessoas lembram do film de 1959, com Lana Turner. O dramalhão das telas, que era refilmagem de outra produção estrelada por Claudette Colbert em 1934, estava sob o mistério da vida real do asssassinato do amante de Lana, pela filha dela. O título ‘imitação da vida’ era perfeito demais para true crime, fofoca e celebridades para ficar de fora, não é?
Mas na verdade, o original, que completa 90 anos em 2024, assim como sua refilmagem que completa 65, se mantém atuais por outros temas extremamente sensíveis e relevantes: racismo e empoderamento feminino. Não necessariamente para destacar avanços, mas para percebermos como ainda engatinhamos com problemas há muito tempo discutidos pela sociedade.

Primeiro: o livro
Imitação da Vida chegou às livrarias ainda 1933, se tornando um best seller imediatamente. A autora, Fannie Hurst criou uma obra que teve um impacto significativo tanto na literatura quanto na cultura popular, principalmente por abordar temas complexos de raça, identidade e classe social nos Estados Unidos. A história foca na vida de duas mulheres, uma branca e outra negra, e suas filhas, destacando as dinâmicas raciais e as dificuldades enfrentadas por pessoas de diferentes origens.
Um dos impactos mais notáveis do livro foi sua adaptação para o cinema, como falei. O romance foi transformado em dois filmes de Hollywood, um em 1934 e outro mais famoso em 1959, dirigido por Douglas Sirk. Especialmente a versão de 1959 é considerada um clássico, conhecido por suas performances emocionantes e pela maneira como aborda questões raciais e de identidade. Essas adaptações ajudaram a levar os temas do livro a um público mais amplo e estimularam discussões sobre raça e as complexidades das relações raciais nos Estados Unidos e no mundo.
Além disso, Imitação da Vida trouxe à tona a questão do “passing” (quando uma pessoa de uma raça é aceita como membro de outra), que era um tema relevante na época, e ainda ressoa nos debates sobre identidade racial hoje. A exploração dessas questões no romance e suas adaptações cinematográficas ajudaram a abrir caminho para discussões mais profundas sobre raça e identidade na sociedade.

Quem foi Fannie Hurst?
Fannie Hurst foi uma proeminente romancista e contista americana do início a meados do século 20. Seus trabalhos frequentemente focavam em questões sociais, particularmente aquelas que afetavam mulheres e imigrantes, e ela era conhecida por suas caracterizações vívidas e narrativas emocionais. Além de Imitação da Vida (1933), Esquina do Pecado (Back Street) (1931) também foi adaptado para o cinema (em 1961, com Susan Hayward e John Gavin).
Fannie também era uma defensora da justiça social e dos direitos das mulheres, usando sua plataforma para falar sobre questões como igualdade racial e sufrágio feminino. Ela era membro de várias organizações dedicadas a essas causas e foi reconhecida por suas contribuições à literatura e à sociedade durante sua vida.
A obra de Fannie Hurst não era unanimidade. Seu texto era considerado “brega” por conta do melodrama e fanhou o apelido de “a Rainha das Sob Sisters”, ou das “Irmãs Choronas”. As lágrimas de outras fizeram da autora ser milionária e extremamente popular. Podiam reclamar, mas liam aos montes.
Ao longo de cerca de 50 anos, Fannie escreveu nada menos do que 17 romances, 9 volumes de
contos, 3 peças, vários artigos em revistas e teve 33 adaptações cinematográficas de suas obras escritas, em clássicos com Doris Day, Frank Sinatra, John Garfield e Joan Crawford, além de, claro, Claudette Colbert e Lana Turner.
Inspiração na Vida Real da autora?

Há uma corrente que defende que a amizade imaginada por Fannie veio de inspiração de sua vida pessoal. A escritora era muito próxima da romancista, folclorista e antropóloga cultural do Renascimento do Harlem, Zora Neale Hurston.
Zora e Fannie se tornaram melhores amigas depois que se conheceram em 1925, em um concurso literário patrocinado pela National Urban League, no Harlem. Enquanto Fannie era conhecida como boêmia e ousada por abertamente ser amiga dos negros, Zora passou por várias dificuldades para poder se firmar como escritora, precisando se sustentar trabalhando para uma atriz da Broadway e também como secretária pessoal, acompanhante e motorista de Fannie enquanto investia em sua própria educação. Não muito diferente do que acontece no livro e nos filmes com as personagens.
Os temas e a trama de Imitação da Vida
Em Imitação da Vida, a proposta de Fanny Hurst foi a de explorar temas complexos de raça, identidade, classe social e as relações entre mães e filhas.
A trama gira em torno de duas mulheres: Bea Pullman, uma viúva branca que luta para sustentar sua filha, e Delilah Johnson, uma mulher negra que se torna amiga e parceira de negócios de Bea. Juntas, elas abrem um negócio de panquecas que se torna extremamente bem-sucedido. Delilah tem uma filha, Peola, que é de pele clara e luta com sua identidade racial, tentando passar por branca para escapar do racismo e das limitações impostas pela sociedade.
Há quatro temas centrais que a autora insere no drama.
- Racismo e Identidade Racial: O livro explora as dificuldades enfrentadas por pessoas de pele clara que podem “passar” por brancas, destacando as tensões e desafios internos e externos associados a essa escolha.
- Classe Social e Aspiração: A ascensão econômica de Bea e Delilah através de seu negócio de panquecas destaca questões de classe e mobilidade social, mostrando como o sucesso financeiro pode afetar as dinâmicas pessoais e familiares.
- Relações Mãe-Filha: As complexas relações entre Bea e sua filha, Jessie, e entre Delilah e Peola, são centrais para a narrativa. O livro explora o amor, o sacrifício e os conflitos que surgem dessas relações, especialmente no contexto de expectativas sociais e pressões pessoais.
- Busca por Identidade: Peola, em particular, representa a busca por identidade e aceitação em uma sociedade que é profundamente dividida por linhas raciais. Sua luta interna e externa para encontrar seu lugar reflete um desejo universal de pertencimento.
Esses temas continuam a ressoar com os leitores e espectadores, oferecendo um olhar crítico sobre questões sociais que ainda são relevantes hoje.

O filme de 1934
O que todos historiadores destacam hoje em dia é como filme Imitação da Vida foi relevante há 90 anos. Uma coisa era ter um best seller, a outra foi colocar nas telas temáticas sensíveis. Por isso, o filme de Imitação da Vida de John M. Stahl, Claudette Colbert e Rochelle Hudson são as estrelas de uma obra considerada “um momento decisivo na história das mulheres no cinema e um momento decisivo para o elenco afro-americano em Hollywood”.
Obviamente há muito que quase um século depois ficou para trás, como a ambição feminina de ser empoderada era cozinhar, assim como a complexa relação entre a serviçal Delilah em relação à Bea, hoje incômoda. Mas, embora a narrativa seja errada e problemática, era ousada por ter o protagonismo feminino e inclusivo em um período extremamente misógino e racista como os anos 1930s. Duas mulheres conseguindo virar milionárias sem a ajuda de homens? Na época era considerado apenas fantasia de Hollywood…
Delilah e Bea são mães solteiras tentando se impor em um mundo dominado por homens. Juntas criam um negócio de panquecas baseado em uma antiga receita de família de Delilah. O sucesso profissional e a sororidade entre elas esbarra com outro desafio. Embora as filhas também se adorem e se apoiem, elas têm outros problemas.

Jessie, filha de Bea, tem problemas com a mãe seguindo uma vida romântica normal, frequentemente atrapalhando seus namoros. Já Peola, é ainda mais dramático. Ela sofre e testemunha o racismo estrutural e como é birracial, se “passa” por branca, sempre se esforçando para se distanciar de Delilah, com consequências dramáticas para todas.
O principal problema do filme de 1934 lida também com a absurda restrição racista da sociedade americana na época que proibia e restringia uma série de temas nas telas. Antes de gravar, o estúdio precisou a aprovação do roteiro pela Production Code Administration, que proibia representações de “miscigenação” (o termo definido pelo Hays Office como “relacionamento sexual entre as raças branca e negra”), que é o coração da trama de Imitação da Vida. Acredita-se que por conta das restrições para atender ao código que os personagens negros mal desenhados do livro ficaram estereotipados. Ainda assim, ainda se aplaude a tentativa de uma abordagem séria ao assunto, mesmo que falha.
O clássico de 1959 e os problemas que persistem
Em 1959, o diretor Douglas Sirk elegeu revisitar o sucesso de 25 anos antes e atualizar Imitação da Vida como um veículo para Lana Turner, Juanita Moore e Sandra Dee. Seria seu último trabalho e tanto Lana como Juanita seriam indicadas ao Oscar.
Na versão ‘atualizada’, que também é problemática hoje em dia, coloca a história começando em 1947, onde a viúva Lora Meredith (Turner) sonha em se tornar uma famosa atriz da Broadway, e numa tarde em Connie Island conhece Annie Johnson (Moore), que também é mãe solteira, depois de momentâneamente perder sua filha, Susie, de vista. A menina tinha se aproximado de Sarah Jane, a filha de Annie e com isso foi acolhida pelas duas.
A amizade entre Lora e Annie é imediata, embora também de cara vejamos o conflito e drama de Sahar Jane, que é birracial e passa como branca, mas vive e testemunha o racismo de forma complexa e sofrida. As duas famílias passam a viver juntas quando Lora oferece ajudar Annie e o plano de ser temporário acaba sendo de vida com Annie cuidando da casa e Lora conseguindo a carreira de atriz e se tornando uma estrela.

Aqui é difícil atualmente perceber como Lora – que se considera inclusiva – perpetua o racismo estrutural e a diferença é clara: a branca consegue o sucesso e fortuna, mas a negra só pode almejar ser cuidadora. Ainda bem que estamos lutando para superar essa barreira! Em 1959, no entanto, ainda era impossível outro cenário e é justamente o drama principal da história, o de Sarah Jane que rejeita a mãe biológica e se envolve em um sem fim de mentiras para poder ter uma oportunidade sem ter que lidar com a questão racial.
Obviamente Sarah Jane é retratada como a antagonista, sua revolta pessoal é narrada como uma ambição decadente e por sua culpa, a já sofrida Annie fica tão decepcionada com a rejeição que morre de coração partido, deixando a jovem arrependida e solitária no final da história. No livro, diferentemente dos filmes de 1934 ou 1959. Sarah Jane jamais retoma o contato com sua mãe e segue a vida sem olhar para trás.
As diferenças do roteiro foram feitas na tentativa de eliminar algumas questões como como o fato de Bea, como a empresária branca, oferece apenas 20% dos lucros da sociedade para Delilah quando é ela que cozinha e é dona da receita de sucesso, é “amenizado” com a versão de 1959 onde não há essa exploração comercial entre a atriz de sucesso e sua assistente pessoal. Porém, para “amenizar” a exploração, em ambas versões é Delillah/Annie que recusa algo melhor. Por puro sentimentalismo, ela escolhe recusar o dinheiro para permanecer como assistente de Bea/Lora. Ou seja, se colocar menor é altruísmo de sua parte. Sem dúvida a questão não envelheceu bem.
Por fim, Imitação da Vida é muito mais sobre racismo do que feminismo. Não deixa de ser revelador que para o papel de Sarah Jane a maior parte das atrizes consideradas fossem brancas, e a escolhida, Susan Kohner, tivesse ascendência irlandesa, mexicana e tcheca-judia, mas não negra.
Lana Turner conseguiu sua sonhada indicação ao Oscar de Melhor Atriz por Imitação da Vida e o filme foi aprovado pelo público, mesmo que massacrado pela crítica, que preferia a versão de 1934. Hoje é considerado por muitos como a obra prima de Douglas Sirk e um dos clássicos de Hollywood dos anos 1950s.
Impacto na Cultura Pop
Seja por ser “um novelão”, por suas falhas e paradoxalmente ousadias, Imitação da Vida ganhou seu espaço como clássico. O filme de Todd Hayes em 2002, Longe do Paraíso (Far From Heaven), é uma homenagem ao filme de 1959.
Notoriamente, até na música a obra repercutiu. A banda R.E.M. – que nunca viu os filmes ou leu o livro – tomou emprestado o título para seu sucesso de 2001, mas já I’m Livin’ in Shame de Diana Ross & The Supremes, é uma citação ao filme e à personagem de Peola/Sarah Jane. “Eu sempre tive tanto medo que meus amigos da cidade alta a vissem, Com medo de um dia, quando eu crescesse
De que eu seria ela”, diz a canção, “Estou vivendo na vergonha, Mamãe, sinto sua falta, Eu sei que você não tem culpa, Mamãe, sinto sua falta”.

Assim, com os 90 anos de um clássico e os 65 de sua versão mais famosa, vemos que a complexidade e irreconciliabilidade fazem de Imitação da Vida filmes importantes, ainda que problemáticos. Eles colaboram para a luta e a discussão de temas ainda atuais, com a demanda de compreensão e engajamento para avançar ainda mais em temas que persistem. E que o cinema pode ajudar a mudar.
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