Se você assistir à séries sobre política vai encontrar uma dinâmica parecida entre casais ligados ao Poder (além da participação de Michael Kelly em pelo menos duas delas). Claro, relações humanas são um reflexo das circunstâncias ao redor delas e talvez um pouco mais em Lioness, A Diplomata e House of Cards, ou até As Garotas do Ônibus, para citar as mais recentes. Em mundos onde o casamento pode ser uma arena de poder ou um refúgio de amor altruísta, essas histórias nos mostram até que ponto a intimidade pode ser influenciada por ambições e sacrifícios pessoais, ou, um plano detalhado.
Esses casais “contemporâneos” ilustram o casamento como uma aliança de estratégias e poder, onde a confiança é frequentemente ofuscada pela necessidade de conquistar ou manipular. Ao comparar esses relacionamentos, podemos refletir sobre o impacto do poder e do idealismo na forma como nos relacionamos – seja pelo amor ou pela ambição. Afinal, são casais que compartilham relações complexas e politicamente carregadas, com tensões que misturam intimidade e poder.

Lioness Op: CIA e lobista trabalham ‘juntos’?
Em Lioness Op., além da voz soturna de Nicole Kidman como Kaitlyn Meade, a superviora senior da CIA, temos um subutilizado Martin Donovan como seu marido, Errol Meade. Errol é um investidor financeiro de alto escalão, que a ajuda com conselhos econômicos e a perspectiva de mercado para as operações lideradas pelas ‘lionesses’.
O reencontro de Nicole e Martin, que trabalharam juntos em Retrato de Uma Mulher, em 1996, têm química e credibilidade que me fez lamentar ter sido praticamente disperdiçadas na primeira temporada, mas agora estão mais em cena.
Se há 28 anos, como Isabel Archer e Ralph Touchett, os primos platonicamente envolvidos no clássico de Henry James eram jovens e idealistas, nada poderia estar mais distante disso em Lioness. O relacionamento de Kaitlyn e Errol reflete o peso das missões perigosas e segredos que acompanham a vida dela na CIA de uma forma prática, mas estranha.

Vemos que eles lidam com conflitos éticos e lealdades divididas, onde o trabalho, muitas vezes sombrio e moralmente ambíguo, afeta diretamente a confiança do casal, mas que eles lidam com isso com tranquilidade. O que vemos é mais uma parceria do que uma união carnal, com a explicação (finalmente!) dada no 3º episódio: depois do câncer de prostata, o relacionamento dos dois não é mais físico, mas ainda assim, de amor.
Kaitlyn e Errol são um espelho mais coerente e efetivo do que vemos em A Diplomata e mais saudável do que foi apresentado em House of Cards, há 11 anos. No entanto, nos sugere que pelo menos em Washington DC casamentos de amor são fictícios.
Assim, a relação entre as personagens de Nicole Kidman e Martin Donovan em Lioness é marcada pela linha tênue entre dever e afeto. Kaitlyn é emocionalmente distante e seu casamento com Errol carrega o peso de um trabalho que a obriga a escolher entre lealdades familiares e as exigências da CIA.
A dinâmica entre eles parece refletir um casamento desgastado pelas imposições do serviço secreto, onde não é fácil compartilhar detalhes da própria vida. A confiança é fragilizada não por mentiras explícitas, mas pelo não-dito, pela omissão. A relação é marcada por um tipo de amor que resiste às adversidades, mas também sofre com a falta de transparência. Essa dinâmica é inspirada em casais da vida real que atuam em setores altamente confidenciais e arriscados, onde a tensão entre a vida pessoal e a profissional pode ser esmagadora.
A Diplomata: crises pessoais influenciam a política externa americana
A Diplomata estreou com boas críticas em 2023, voltou com uma melhor temporada em 2024 e agora já podemos pensar na próxima fase, em 2025. Nela vemos a diplomata de carreira instável, muito jovem e idealista Kate Wyler (Keri Russell) casada com o diplmata de destaque, Hal Wyler (Rufus Sewell), atualmente aposentado e a ajudando nos bastidores.

Kate e Hal como casal é tudo que diplomatas não são e a relação tóxica dos dois é um claro impecilho para a posição que ocupam. Mas A Diplomata explora justamente a tensão entre compromissos políticos e pessoais e a diplomacia os envolve em jogos de poder que desafiam seus valores individuais e conjugais. Inspirado por dinâmicas em casamentos de diplomatas e políticos, o relacionamento dos dois mostra como a profissão pode redefinir o apoio e a ambição entre os cônjuges.
As vidas de Kate e Hal são profundamente enredadas na política internacional, com ela em um dos postos mais tensos do cenário global – sendo treinada para vice presidência – enquanto ele desempenha o papel de conselheiro. O que atrapalha Hal é ter suas próprias ambições e estratégias antes de tudo, e o que impede Kate de brilhar é sua arrogância. A relação entre eles é cheia de fricções e rivalidades, pois cada um tem uma visão particular sobre o que é importante para sua carreira e seu casamento.
Eles parecem mais parceiros estratégicos do que um casal romântico tradicional. Esse casamento vive em uma espécie de limbo, com constantes ajustes de poder entre os dois. A personagem de Russell às vezes enfrenta dilemas sobre até que ponto pode confiar em seu marido, enquanto Sewell, por sua vez, vê no sucesso da esposa uma oportunidade de exercer seu próprio poder. Casais como esses existem na diplomacia, onde há equilíbrio entre apoio mútuo e competição velada, especialmente quando ambos têm aspirações ou carreiras no setor público. Eles estão muito próximos de Claire e Francis Underwood (Robin Wright e Kevin Spacey), de House of Cards. E a futura terceira temporada deixará as comparações ainda mais claras!

Uma parceria que funcionou até certo ponto
Quando a refilmagem de House of Cards chegou à Netflix, em 2013, tudo em sua narrativa fazia sentido e foi um grande sucesso. Até que o #metoo e os problemas pessoais de Kevin Spacey mudaram a rota da história, que chegou ao fim sem o impacto de sua estreia.
Robin Wright e Kevin Spacey brilharam como Claire e Francis Underwood, o casal que representa a parceria política pura, onde o casamento é uma extensão de sua estratégia de poder. Eles são mais aliados do que amantes, comprometidos em fortalecer suas posições no governo. Este casal é fortemente inspirado em parcerias políticas reais, onde os cônjuges formam alianças estratégicas de longo prazo para ganhar e manter poder.
Personificando um casal completamente dedicado à busca pelo poder, deixando o amor tradicional em segundo plano, a relação entre Claire e Frank Underwood é uma parceria fria e calculista, onde cada um conhece bem o valor do outro dentro de um plano maior. Eles compartilham segredos e cumprem papéis específicos dentro de sua “máquina política” conjugal. O compromisso entre eles é mais uma aliança de interesses do que uma história de amor, e isso os torna inseparáveis, embora sem afeto aparente.
A inspiração para a dinâmica deles vem de casais reais que, na história política, usaram o casamento como um trunfo em campanhas ou projetos de poder. Casais como os Clintons, por exemplo, muitas vezes evocam uma imagem pública de parceria pragmática e sólida, em que ambos têm um papel claramente definido e respeitam o poder e a posição do outro. Em House of Cards, esse pragmatismo é levado ao extremo, tornando-se quase um pacto implacável de poder acima de tudo. E como na ficção, funcionou até que não.
E o que as séries querem nos sugerir?
Há sempre um problema nas narrativas de Hollywood: elas são repetitivas e sem imaginação. E, um tanto (ainda) misógina. Como um reflexo do que julgam ser a única alternativa para uma mulher em posição de Poder, os casamentos parecem mais um ringue constante de brigas ideológicas e egoístas, relações tóxicas baseadas em uma parceria densa, sem sexo (ou algum, ocasional), mas – jamais – uma união emocional, saudável e alinhada.
Obviamente é preciso ter drama, mas a falta de criatividade nos faz encontrar as mesmas personagens em produções diferentes e isso é cansativo. Em todos esses casos, as relações se distanciam do romantismo tradicional e exploram uma interdependência fria e pragmática. Nos três, o casamento se torna quase uma instituição por si só, essencial para sustentar as ambições e suportar o isolamento que vem com carreiras políticas e governamentais intensas. Será que é assim mesmo? Ou melhor, mesmo que seja um reflexo “realista”, será que na ficção TODAS precisem ser assim?
Hollywood parece acreditar que sim pois cada série a seu modo, mostra o impacto da vida política e de alto risco no casamento e, em todas, os personagens estão dispostos a comprometer aspectos pessoais para servir a um propósito maior, e isso torna suas relações intensamente fascinantes e, ao mesmo tempo, frias e calculadas. É o retrato do que parecem ver como “casamento profissional”.

Me parece, embora seja cedo para julgar, que Lioness esteja mudando sutilmente essa premissa com a conversa íntima entre Kaitlyn e Errol se questionando se perderam tempo de quando tinham um casamento saudável e sexual antes de concordarem de permanecer na situação atual, onde são mais parceiros do que amigos ou amantes.
Se aspirações pessoais e profissionais se entrelaçam de maneira profunda e por vezes sombria de tal forma que o vínculo conjugal deixa de ser um refúgio emocional e se torna uma aliança estratégica, é fácil esperar ameaças constantes para que possam se manter no topo. Assim, essas séries não só exploram o lado humano das relações de poder como também nos lembram que, em certas circunstâncias, o casamento realmente feliz, não rende bons dramas. Esses casais, ainda que de formas diferentes, representam a resiliência e a fragilidade de relações que sustentam, mas também consomem, aqueles que as constroem.
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