No mundo binário atual, o filme O Aprendiz correu risco de desagradar a muita gente, mas não perdeu a oportunidade de lançar um olhar – não necessariamente simpático – ao empresário, milionário e Presidente americano Donald Trump. Idolatrado pelos conservadores, odiado pelos liberais, o ex-apresentador de TV é um fenômeno da política e da comunicação, daí ser irresistível conhecê-lo melhor.

Apenas nos Estados Unidos um filme como esse poderia ser feito enquanto o biografado está vivo e se preparando para voltar à Casa Branca. O Aprendiz explora a ascensão de Donald Trump no setor imobiliário de Nova York durante as décadas de 1970 e 1980, onde criou sua persona e ganhou fortunas.
Diretores mais conhecidos como Paul Thomas Anderson e Clint Eastwood foram convidados a dirigir o filme, mas ambos recusaram a oferta, considerando o projeto um “risco comercial”. Com isso, o cineasta iraniano Ali Abbasi, conhecido por trabalhos como Border (2018), premiado na mostra Un Certain Regard em Cannes, e Holy Spider (2022), que rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes, ficou com a missão infeliz de criar um filme que oficialmente evita chegar perto da carreira política de Trump, mas não engana ninguém e visita seu passado apenas para destacar o presente.
Há grandes surpresas: Sebastian Stan como o jovem Trump está ótimo, mas melhor ainda está Jeremy Strong no papel do ainda mais polêmico Roy Cohn, o advogado que foi mentor de Donald Trump e cuja história é ainda mais fascinante.
Se apenas um E.T. não sabe quem é Trump, se você não acompanha a política americana vai sofrer bastante para entender quem é Roy Cohn, que é a alma do filme. O Aprendiz é o nome do reality show que o milionário estrelou por anos, mas aqui é justamente como ele foi abraçado pelo homem mais odiado dos Estados Unidos e ganhou sabedoria política e empresarial na troca.
O filme retrata a trajetória de Donald Trump, ainda um jovem desconhecido e cheio de sonhos ambiciosos e sua relação com o controverso advogado, que foi uma figura importante no McCartismo e na administração de Richard Nixon, assim como na de Ronald Reagan. Cohn “adotou” Trump e o transformou de empresário ambicioso em celebridade midiática.
Com excelente reconstituição de época, o filme estreou na competição principal do Festival de Cannes em 2024, onde recebeu críticas mistas por conta do roteiro, mas Stan e Strong foram amplamente elogiados. Para tentar ficar no meio do caminho, o roteiro é superficial e nem arranha a a complexa figura de Trump ou aprofunda na de Cohn. O que é uma pena porque Jeremy Strong mais uma vez nos assusta com sua dedicação ao papel.

Roy Cohn foi um advogado e estrategista político americano que ganhou notoriedade como assessor do senadorJoseph McCarthy durante os infames inquéritos anticomunistas da década de 1950, conhecidos como o macartismo. Como mentor de Donald Trump, foi ele que ensinou táticas de confronto, manipulação da mídia e estratégias legais agressivas. Era contra a ética: a vitória era a meta a qualquer custo. Ele faleceu em 1986, de complicações relacionadas à AIDS, mas negou publicamente sua condição até o fim.
É raro ter uma figura tão unanimamente odiada como foi Cohn, e é assustador que Strong consiga nos fazer sentir pena dele em algum momento. O homem verdadeiro não merecia e não teve empatia ou simpatia enquanto vivo. Era, sem receio de lacração: um monstro. Foi ele quem condenou o casal Rosenberg à cadeira elétrica (com Rose sendo inocente) e no período em que a AIDS foi uma crise de saúde, atrapalhou deliberadamente os estudos e distribuição de medicamentos (enquanto os usava pessoalmente). Ter Trump como pupilo é fato e incomoda aos defensores a inegável conexão entre ambos. E é justamente toda essa polaridade que “salva” O Aprendiz de alguma forma.
No final das contas, O Aprendiz pode não ser o filme definitivo sobre Donald Trump, mas consegue oferecer um olhar provocador sobre as forças que moldaram o homem por trás da persona midiática e política, destacando a ascensão de um ícone polarizador, formado por um mentor imoral e pelas engrenagens de um sistema que recompensa ambição a qualquer custo. Talvez o maior mérito de O Aprendiz seja nos lembrar que figuras como Trump e Cohn são produtos do mesmo contexto que insistimos em ignorar — e que sua história, em última instância, é tão sobre eles quanto sobre o momento atual.
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