É inacreditável como a percepção muda com o tempo. Em 2019, Todd Phillips foi aclamado como um gênio, e Joaquin Phoenix conquistou o Oscar de Melhor Ator por sua performance inesquecível em Coringa. Um retrato intimista, denso e até asfixiante que foi celebrado como um marco no cinema contemporâneo. Cinco anos depois, trazendo algo igualmente ousado e brilhante, ambos foram surpreendentemente massacrados pela crítica e parte do público. Será que a genialidade só é reconhecida quando se encaixa no que estamos acostumados a aplaudir?
Por isso, seria impossível fechar 2024 sem declarar que não dar a Joaquin seu segundo Oscar por mais uma deslumbrante atuação em Coringa: Loucura à Dois, é uma das maiores injustiças do ano. Simples assim.

Um “musical” delirante e um original difícil de superar?
Quando todos babam as obras de Baz Lurhman, incluindo Elvis, mas mais ainda, Moulin Rouge, mas arrasam Coringa: Loucura à Dois, fica ainda mais claro que houve má vontade e até cultura para entender o que Todd Philips fez com seu filme. Criar um estudo psicológico profundo e impactante de um dos vilões mais caricatos e populares do universo da DC não é para covardes e a entrega de Joaquin Phoenix ao papel não tem paralelo nas últimas décadas (no plural mesmo). O filme é visualmente deslumbrante, musicalmente genial e artisticamente instigante. Melhor do que o original, na minha opinião.
Sei que muitos consideraram o filme sem ritmo, mesmo que inovador no uso de elementos musicais, o que não agradou a todos. Esses consideraram que as sequências musicais quebravam o tom sombrio e introspectivo estabelecido no primeiro filme, mas é uma sequência perfeita.
O Coringa de 2019 foi considerado inovador tanto no contexto dos filmes de super-heróis quanto no cinema em geral. Ao se aproximar de dramas psicológicos autorais como os clássicos Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982), ambos de Martin Scorsese, Coringa ofereceu uma narrativa mais intimista e voltada para o desenvolvimento de personagem. Incluiu também uma crítica social contundente, abordando temas com desigualdade socioeconômica; marginalização de indivíduos com problemas mentais e violência como reação a uma sociedade opressiva, criando uma conexão com questões contemporâneas e dando ao filme uma ressonância que poucos alcançaram antes

Mais ainda, ao focar quase exclusivamente em Arthur Fleck (Phonenix), o coringa, foi um diferencial porque explorou sua jornada psicológica e emocional de maneira profunda, o tornando um personagem trágico e humano antes de ser um vilão. O Coringa não oferece respostas fáceis nem redime ou condena totalmente o protagonista e essa ambiguidade provocou debates intensos sobre as mensagens do filme e as interpretações do público.
Com isso tudo, embora quisessem uma sequência, a barra para a dupla Phillips-Phoenix estava alta e muitos ficaram desconfiados quando começaram a gravar, mesmo que felizes quando Lady Gaga foi anunciada como co-estrela.
A narrativa de psicóticos via musicais
A narrativa se apoia nos delírios musicais de Arthur, um elemento que sempre foi parte de sua construção enquanto personagem. A escolha de Todd Phillips de transformar a dor psicológica em sequências musicais não apenas aprofunda a complexidade emocional do protagonista, mas também cria uma experiência cinematográfica imersiva. Harleen Quinzel (Lady Gaga), ao se conectar com Arthur, se vê arrastada para o mesmo mundo de fantasia, resultando em uma relação simbiótica, emocionalmente destrutiva e artisticamente rica. E trágica, claro.
A proposta não era ter uma continuação, mas o sucesso do original criou uma demanda irresistível. E aqui, pouco anos depois dos crimes que chocaram Gotham, o Coringa aguarda seu julgamento, mas é uma celebridade involuntária de obcecados com true crime e celebridades.
O que é “delírio a dois”
O título do filme é o teaser e a explicação mais clara da história porque representa tanto os delírios e fantasias compartilhadas entre os dois como é efetivamente um transtorno psiquiátrico raro, marcado pela transferência de delírios de um sujeito considerado psicótico para outras pessoas próximas dele. O que reforça a importância visual e intelectual de todas cenas musicadas.
Ao longo do julgamento vamos descobrindo mais detalhes escabrosos da infância abusiva de Arthur – desde violência doméstica à repetidos abusos sexuais – e, para sobreviver, ele transferiu seu trauma para um mundo de imaginação que o protegia e repetia as cenas de filmes musicais que via com sua mãe. Conforme todo esse trauma é trazido à tona em seu julgamento, mais delirante ele passa a viver a fantasia. Se Joaquin nos fez chorar e temer o Coringa antes, agora temos empatia e dó do vilão, é muito emocionante o seu trabalho.

Folie à Deux é tanto uma história de amor distorcida quanto uma análise profunda da psique dos dois personagens, Arthur e Harleen, culminando em eventos que desafiam a percepção da realidade e da fantasia
Através da atualidade do que o Coringa representa, Todd Phillips agarrou a oportunidade de utilizar a cidade de Gotham como a crítica perfeita de uma sociedade consumidora, irresponsável e indiferente, que não apenas não dá apoio aos mais necessitados, mas que quer usá-los para lucrar ou justificar suas próprias falhas.
Reduzir Coringa: Loucura à Dois à um musical é duplamente errado: primeiro porque o eleva e segundo porque a música é parte do delírio do antagonista. Sempre foi. A essência que foi tão elogiada no original está presente de ponta a ponta, apenas como o filme mesmo critica: esperam o caos, a violência e não querem lidar com a dor humana.
A injustiça nas premiações
Em Coringa: Loucura à Dois, Todd Phillips ultrapassa os limites do que esperamos de uma sequência. Ele não só mantém a essência que tornou o filme original um fenômeno, mas vai além, explorando a dor humana de forma visceral e artística. Infelizmente, parece que estamos mais dispostos a celebrar o caos e a violência do que a encarar a complexidade emocional dos personagens. A negligência nas premiações, especialmente a falta de reconhecimento para Joaquin Phoenix, é um reflexo de uma crítica que prefere rotular do que tentar compreender. Este filme não é apenas um dos melhores de 2024 – é um lembrete poderoso de como o cinema pode ser, ao mesmo tempo, desafiador e transformador.
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