O Impacto de O Pássaro de Fogo no Ballet

É incrível que uma montagem de uma peça, criada em 1910 e repensada em 1949, ainda seja moderna em 2025. Mais ainda, é incrível que um ballet que varia entre 47 a 31 minutos e que reúna três gênios do século 20 exista. Pois O Pássaro de Fogo não tem a popularidade de Um Lago dos Cisnes, mas seu impacto na vida de uma bailarina não fica nada atrás.

Há algumas versões do ballet ao redor do mundo, da original de Mikhail Fokine à de George Balanchine, mas é essa última versão criada para o New York City Ballet em 1949 que geralmente desperta grande impacto. Com cenários e figurinos de ninguém menos do que Marc Chagall, a produção ganhou mais uma remontagem em 2025 para homenagear a bailarina para o qual ele foi criado: Maria Tallchieff.

Curiosamente, uma obra tão russa em alma e estrutura foi a que marcou o primeiro grande sucesso da companhia de Balanchine , que completou 90 anos em 2024. Uma obra que ficou famosa com os Ballets Russes de Serge Diaghilev e cuja trajetória é tão fascinante quanto a mágica de sua personagem principal.

A inspiração no folclore russo

A figura enigmática e impactante de Serge Diaghilev é mesmo uma lenda incrível. O empresário russo tinha um radar para reunir os melhores e inovadores fosse nas Artes Plásticas, na Música ou no Ballet. Quando ele criou o Ballets Russes, em 1909, conectou Michel Fokine, Léon Bakst, Alexandre Benois, Tamara Tarsavina, Anna Pavlova, Vaslav Nijinsky e Igor Stravinsky entre outros gênios. Ele sabia que queria divulgar a cultura russa no exterior, mas mais ainda, criar algo inesquecível e belo.

Os primeiros trabalhos de Fokine, que estava cansado do estilo já engessado de Marius Petipa, foram A Morte do Cisne e Les Sylphides, que refletiam sua visão moderna: balés curtos, sem interrupções ou narrativas complexas. Praticamente apenas dança e música (algo que Balanchine levaria para outro nível anos depois). Foram extremamente bem sucedidos, deixando o caminho para mais obras semelhantes.

Uma vez que os dois primeiros poderiam ser histórias internacionais, Fokine mergulhou no folclore russo para seu trabalho seguinte. Ele se encantou com a sugestão de Benois sobre o poema A Viagem de Inverno, de Yakov Polonsky, escrito em 1844 e que falava de feiticeiros, princesas e a mágica dos Pássaros de Fogo. Visualmente rico, misterioso e aventuresco, todos gostaram da proposta.

O roteiro combinou outros elementos de contos de fadas russos para mostrar o embate entre o bem e o mal no balé. Com música de Stravinsky e cenários de Bakst, O Pássaro de Fogo estreou antes que o coreógrafo estivesse satisfeito com o resultado tendo o próprio Fokine no principal papel masculino e uma jovem Tamara Karsavina como o ser mágico.

A naturalidade dos passos, a vitalidade e a expressividade que O Pássaro de Fogo trouxe para os palcos de Paris fez da obra sucesso imediato. O fato de que o Pássaro era tão diferente dos cisnes, fadas ou princesas já usuais na dança acrescentou mistério ao papel e até rebeldia calculada. Ficou eternamente ligado à Karsavina que décadas depois ensinou pessoalmente à Margot Fonteyn todos os passos quando Royal Ballet montou sua versão, em 1954.

O Pássaro de Fogo foi o primeiro balé assinado por Igor Stravinsky, que não ficou particularmente satisfeito com a experiência, mas o sucesso garantiu que a parceira fosse repetida mais vezes e assim vieram depois Petrushka (1911) e A Sagração da Primavera (1913).

Uma das partes inovadoras da partitura incluem os leitmotifs para destacar os elementos mortais e sobrenaturais do Pássaro de Fogo. Além do tema do pássaro, a conclusão da obra é ultra famosa e se ouvir com atenção, perceberá várias trilhas sonoras clássicas inspiradas no trabalho de Stravinsky, como a trilha de Intriga Internacional (North by Northwest) de Elmer Bernstein, composta 40 anos depois.

A música do balé foi adaptada para três suítes de concerto, gravadas por vários maestros até hoje. A visão de Fokine ainda permanece a mais influente, mas, graças à genialidade de Balanchine (que também passou pelo Ballets Russes), chegou aos Estados Unidos ainda mais moderna.

Um ballet para Maria

A história do ballet é a do Príncipe Ivan, que trabalha com o mítico Pássaro de Fogo para derrotar o feiticeiro maligno Koschei, o Imortal, e resgatar princesas capturadas, com uma das quais ele se casa. Em 1948, Balanchine já encantado com o talento de Maria Tallchief e sua força atlética e dramática elegeu essa peça para revisar e marcar a estreia do que viria a ser o New York City Ballet. Na sua versão, mais curta que a original, o que ganha destaque são os elementos míticos do pássaro.

A primeira apresentação foi no City Center com cenário e figurinos do pintor Marc Chagall. Os gritos e aplausos no final, segundo a bailarina lembrou anos depois, foram inesperadamente entusiasmados, como se estivessem vendo uma partida de futebol americano. Nascia uma estrela e uma lenda da dança. Um momento que ela jamais esqueceu.

O desagrado com Chagall

É verdade que ter um artista como Chagall assinando figurinos e cenários é inesperado, mas foi um “aproveitamento” de Balanchine. O pintor tinha criado tudo para outra produção do ballet, mas quando ela fracassou antes mesmo de estrear, tudo ficou arquivado.

O produtor que ficou com os cenários e figurinos, os deu ao New York City Ballet e Balanchine obviamente usou sem mencionar que, embora inéditas, não tinham sido pensadas para ele. Quando Chagall soube (ou viu, dependendo das fontes) ficou furioso por não ter sido consultado antes e Balanchine precisou tirar o nome do pintor de qualquer divulgação do ballet.

Depois de Maria deixou o NYCB, O Pássaro de Fogo ficou “guardado” até que, em 1970, Balanchine identificou o talento de uma adolescente Gelsey Kirkland, decidindo resgatar a obra para ela. Os figurinos foram revisados por Madame Karinska (em cima do original) e é essa versão que até hoje está no repertório da companhia, com mais alterações feitas pelo coreógrafo entre 1972 e 1980. Por um tempo deixou de usar os figurinos de Chagall, mas eles foram resgatados para as montagens mais recentes.

Ao lado de Jacques d’Amboise, Gelsey foi capa de várias revistas quando O Pássaro de Fogo foi resgatado e também passou a ter o ballet como seu papel de assinatura. Das montagens mais famosas, há a versão completa de Fokine, filmada com Margot Fonteyn em 1959, e trechos com Maria Tallchief que atestam que O Pássaro de Fogo mantém sua importância ao longo de 115 anos. Só o que é perfeito resiste ao tempo.


Embora o American Ballet Threatre tenha apresentado o balé completo ainda nos anos 1990s, foi a versão de 2012, de Alexei Ratmansky criada para Misty Copeland e Marcelo Gomes, que fez grande sucesso de crítica.

Assim, O Pássaro de Fogo, com sua mistura de tradição russa, inovação artística e uma história cheia de magia e misticismo, permanece uma das peças mais relevantes e fascinantes do balé mundial. Não só resiste ao tempo, mas também evolui, tocando novas gerações de bailarinas e públicos, uma fonte inesgotável de inspiração e desafio, mostrando que a verdadeira arte, quando genuína e inovadora, tem o poder de atravessar séculos e encantar diferentes épocas e culturas.


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