No Podcast Estúdio Pow!, no qual participei até o fim de 2024, o último episódio palpitava sobre Golden Globes e ali manifestei meu “receio” de que Emília Perez fosse o “novo A Vida é Bela“ e tirasse de Walter Salles Jr. não apenas os prêmios de Filme Estrangeiro, mas que Karla Sofía Gascón ameaçasse Fernanda Torres não necessariamente com uma vitória, mas com a vaga entre as cinco indicadas ao Oscar. Detesto perceber que possa estar certa!
Claro que as indicações ao Oscar ainda não saíram, e mesmo os “desprezados” no SAG Awards (no caso, Angelina Jolie, Nicole Kidman, Tilda Swinton e Fernanda) podem inverter o cenário e serem indicados, mas é difícil ganhar o Oscar sem ganhar o SAG porque são os mesmos votantes. Enfim, todo esse cálculo já fiz antes, incluindo meu receio de que a maior parte das atrizes fossem sair da categoria Comédia/Musical, como aconteceu. Por isso, no Brasil, mesmo quem não viu Emília Perez já não gosta do filme e eu – que já vi há algumas semanas – estou na corrente contrária. Eu gostei.


Sei que vai soar esquizofrênico, mas, Emília Perez é um filme com uma ótima história, boas atuações, mas péssima trilha sonora, o que é inadmissível para um musical. Se quiser implicar ainda mais, é um filme francês, passado no México sem sequer UM ator mexicano no elenco. Como isso é possível? Mais é.
O filme mostra como uma advogada idealista, Rita (Zoe Saldaña) é escolhida pelo mais temido chefe do tráfico, Juan “Manitas” Del Monte (Karla Sofía Gascón) que quer se transformar em mulher. Manita é casado com Jessi (Selena Gomez), com quem tem dois filhos e mesmo amando a esposa, quer ser verdadeiro com si mesmo e começar uma nova vida. Os problemas começam quando, já com sua nova identidade de Emília Perez, Manita volta para as vidas de seus filhos e Jessi, sem conseguir evitar a tragédia como consequência de seus atos.

Tudo em Emilia Pérez é exagero e um tanto confuso, mas, quando engata, nos envolve e por causa da grande interpretação de Karla Sofía. Há violência, corrupção, empatia, tristeza e emoção. O diretor Jacques Audiard descreve a história como uma ópera, mas nada é fechado em uma caixa. Talvez essa liberdade acabe parecendo estar atirando para todos os lados. Não chega a atrapalhar em nada mas os detalhistas de plantão podem estranhar.
Pra mim, se há um defeito em Emília Perez é na música. Um musical sem que a gente memorize uma canção ou se emocione com ela? É o que temos. Mas se superar essa parte, o que está aqui de forma incoerente são histórias de recomeço, de renascimento e de redenção. Emília quando era Manitas trouxe dor, morte e ganância para as pessoas, mas como Emília é o inverso: se dedica a corrigir as consequências de seus erros passados, redescobre a si mesma e o amor. Infelizmente a vida é implacável. Aqui está a fonte de muitas críticas que consideram essa mudança simplista demais.
Fosse um “filme convencional”, ninguém negaria à Emilia Perez seu valor narrativo e sua proposta de uma história cheia de reviravoltas e uma conclusão inesperada. Mas o fato de que quer mesmo fazer algo diferente coloca o musical em um patamar de coragem artística que faz sim dele, “o A Vida é Bela” do ano. Em outras palavras, vai ganhar de Eu Ainda Estou Aqui.

Quero falar de tudo que gostei em Karla Sofía, mas esbarro com os spoilers e acabo falando dos defeitos que juro que não incomodam ao longo do filme. É que Manitas e Emília são duas personalidades tão opostas que quando Karla navega entre um e outro é ao mesmo tempo assustador como emocionante. As duas partes de uma mesma pessoa, despertadas em diferentes momentos e sem chance de mudar o destino. Nós torcemos por Emília, mas a sombra de Manitas está sempre presente e a conduz para a tragédia.
O mérito de Karla Sofía de superar todas as armadilhas de Emilia Perez justifica sua indicação aos Prêmios, mesmo que Demi Moore esteja no seu caminho. Sabemos pouco de Manitas, mas o que vemos dá muito medo. No entanto, Audiard opta por não entrar no passado violento do traficante, mas reforçar o estereótipo quase beato de Emilia em contraste à decadência moral de Jessi, essa sim uma vítima das circunstâncias, com uma Selena Gomez revelando um lado pouco explorado de atriz dramática.
Assim, Emília Pérez, apesar de suas falhas — e principalmente sua música esquecível —, é um filme que ousa, que arrisca e que, ao final, se revela mais complexo do que muitos imaginam. A coragem artística de Jacques Audiard, que apresenta uma história de redenção e autodescobrimento, com uma conclusão que nos deixa sem palavras, eleva o filme a um patamar inesperado. O desempenho de Karla Sofía Gascón é, sem dúvida, o ponto alto dessa obra.

Ao mesmo tempo, o filme nos provoca a pensar sobre questões mais amplas, como a busca pelo perdão, os erros do passado e as consequências implacáveis da vida. Emília Pérez pode até não ser um musical tradicional, mas é uma obra que transcende o gênero e nos oferece uma experiência cinematográfica única. Se vai ou não superar Eu Ainda Estou Aqui, o tempo dirá, mas é inegável que, ao menos em sua proposta, ele é um dos filmes mais ousados e intrigantes do ano.
Seja como uma tragédia, uma jornada de renascimento ou um estudo de personagens, Emília Pérez nos desafia a enxergar além das convenções e a refletir sobre a complexidade humana, algo que poucos filmes conseguem fazer com tanta intensidade e coragem.
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