A verdadeira História de Terra Indomável

A paixão americana pela ocupação territorial da parte oeste dos Estados Unidos é tão visceral que rende lendas, livros, documentários, séries e filmes, mais ainda, um gênero em si só: o western. A figura dos cowboys, heróicos ou vilões, se multiplicam por séculos e nunca saem de moda. A “nova” onda de revisitação desse período histórico tem demorado a emplacar, com repetições de histórias ou situações violentas, lentas e até meio sem sentido. Diante disso, vamos reconhecer: Terra Indomável (American Primeval) se destaca.

São seis episódios apenas, fáceis de maratonar. Inspirado em fatos reais (a Guerra de Utah) que são usados no pano de fundo, a série dirigida por Peter Berg é mais uma vez uma parceria do diretor/ator com os roteiristas Mark L. Smith (The Revenant) e Eric Newman (Griselda e Narcos), além do ator Taylor Kitsch (Painkiller). Tudo funciona, mesmo que nada seja “novo”.

Uma características da visão atual dos westerns, que inclui a saga de Kevin Costner, Horizon, tem sido a de destacar a miséria absoluta dos que se arriscaram a povoar o território, sempre expostos aos perigos da natureza, aos confrontos com os indígenas lutando por suas terras, mas, acima de tudo, à podridão da alma humana. O clássico perfeito de Clint Eastwood, Os Imperdoáveis, de 1992, foi considerado inovador há 33 anos quando mostrou um pouco desse cenário, mas agora as camadas de violência vêm sido reforçadas. A série Billy the Kid também navega por essa vertente. Então é importante destacar o quanto Terra Indomável (American Primeval) é muito boa.

Um período sangrento e religioso no Oeste

Assim como fez com The Revenant, Smith foi na história real para criar sua série. No caso, as Guerras de Utah, também conhecidas como a Guerra do Utah ou Guerra Mórmon, que ocorreram entre 1857 e 1858, e envolveram principalmente a população mórmon (da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias) que habitava o território de Utah, nos Estados Unidos, e o governo federal dos Estados Unidos.

Isso porque a liderança de Brigham Young (Kim Coates, espetacular) fez com que muitos membros de sua Igrega migrassem para a região de Utah, fugindo de perseguições religiosas que os haviam forçado a deixar outros estados, como Illinois e Missouri. Eles fundaram uma colônia que, em 1850, foi organizada como o Território de Utah, com Young como governador. Por isso até hoje a presença dos Mórmons seja tão significativa na área.

O problema é que, como a série mostra, a relação entre os mórmons e o governo federal dos EUA começou a se deteriorar porque Brigham Young e outros líderes mórmons possuíam grande influência política e religiosa sobre o território, o que gerava desconfiança no governo federal. Isso incluíe a até hoje estranha prática de poligamia, na época vista mais ainda como uma violação das normas sociais e legais americanas.

Além disso, os mórmons estabeleceram um governo teocrático, onde a Igreja tinha grande poder sobre as decisões políticas, visto corretamente como uma ameaça à autoridade central. Para piorar, e isso está fora da série, a execução do fundador da Igreja Mórmon, Joseph Smith, em 1844, despertou perseguições contra os mórmons e deixaram ressentimentos profundos.

Terra Indomável (American Primeval) acontece justamente no início da Guerra, portanto é toda em cima de uma tensão crescente e complôs políticos violentos. Aqui, o governo americano já percebeu que com Young como governador de Utah, os mórmons efetivamente estavam se tornando um “estado dentro de um estado”, desafiando a autoridade federal. Por isso o Presidente evnviou uma força militar para Utah, com o objetivo de garantir que o novo governador federal fosse aceito e que o controle do território fosse assegurado.

Acompanhamos de perto o plano de Young de trazer o caos para o local, alimentando a animosidade entre indígenas e colonos, enquanto ganha controle do estado e sustenta entre os mórmons que há uma perseguição religiosa contra eles.

Milicianos, guerrilha e o massacre de inocentes

Logo no início, a série coloca a ação em um dos episódios mais sangrentos da História de Utah, o Massacre de Mountain Meadows, quando a milícia mórmom adota uma estratégia de guerrilha e ataca um grupo de colonos que viajavam para Utah. 120 pessoas morreram, incluindo homens, mulheres e crianças.

A Guerra do Utah simbolizou o primeiro grande confronto entre o governo dos EUA e uma comunidade religiosa que tinha uma visão bastante distinta do papel do estado. Depois disso, a relação entre os mórmons e o governo federal foi marcada por uma vigilância mútua e um ponto de virada no relacionamento entre o Estado e a religião nos Estados Unidos.

O Massacre tem grande destaque porque aconteceu em um vale isolado chamado Mountain Meadows, localizado no sul de Utah, perto da atual cidade de Cedar City. A caravana composta principalmente por colonos do Arkansas, que estavam viajando em direção à Califórnia e inicialmente a culpa caiu nos ombros de tribos indígenas. Quase todos foram mortos de forma brutal com a maioria das vítimas morta a tiros ou massacrada com facas. A cena é bem gráfica (fica o aviso).

O massacre foi encoberto por muitos anos e apenas em 1859 que as autoridades começaram a investigar o ocorrido, após relatos e testemunhos dos poucos sobreviventes (17 crianças) e de outros membros da comunidade local. Terra Indomável (American Primeval) deixa essa parte de fora.

O drama em tempos sangrentos

A história gira em torno de Sara e Devin Rowell (Betty Gilpin e Preston Mota), mãe e filho, que chegam à Utah e têm pressa de chegar até a cidade onde está o marido de Sara, mas claramente vemos que a dupla está fugindo de algo mais sério. Eles chegam no posto avançado do empreendedor de fronteira Jim Bridger (Shea Whigham) (personagem que também aparece em The Revenant) e precisam de um guia para levá-los mais para o oeste.

A primeira opção é Isaac Reed (Taylor Kitsch) um homem torturado com o passado e que viveu com os nativos e que embora se recuse a aceitar o trabalho, acaba acompanhando Sara e Devin de longe. Os dois fazem parte da fatídica caravana de Mountain Meadows e são salvos justamente por Reed, além da jovem nativa americana fugitiva, Two Moons (Shawnee Pourier).

A partir daí, são três ou quatro histórias paralelas que voltarão a se cruzar nofinal: a principal, que é a família improvável que se forma com Sara, Devin, Reed e Two Moons, fugindo de caçadores de compensas (Sara é uma assassina procurada) e esbarrando com perigos inimagináveis no caminho.

Também acompanhamos a história de Abish (Saura Lightfoot-Leon), a mórmon casada contra sua vontade e outra sobrevivente do massacre que é sequestrada por nativos, passando a lutar por sua vida e revisando o que imaginava sobre Fé e pessoas. E sim, temos o embate entre Young e Bridger, que esse sim, segue fatos históricos. As vidas dessas pessoas vão cruzar – direta ou indiretamente – ao longo dos episódios, num arco de rendição e violência que cresce em você.

A violência e a crueldade constante da história, a princípio, é um constante incômodo porque para sobreviver à uma realidade tão massacrante destrói a integridade – se ainda existente – em qualquer um. Não há ninguém sem esconder algum segredo e tentar manipular as situações, seja uma criança ou adultos, e sem poder ter confiança, o drama navega em cenas sangrentas e angustiantes nos seis episódios. Mas o envolvimento do casal principal é crível e tem química, algo super raro em westerns. Mais raro ainda, é ter uma liderança feminina também crível. Tanto Sara como Abish enfrentam perigos e violência sem perder força ou se vitimizar, se transformando ao longo do caminho.

Há quem reclame que Terra Indomável (American Primeval) tenta ser mais um faroeste revisionista-épico sem conseguir. Não acho que tenta ser, a narrativa atual é atualizada e contextualizada. Não inocentes de nenhum dos lados, a sobrevivência encontra momentos de empatia e de total destruição, e isso é um dos méritos da série.

Terra Indomável (American Primeval) pode não ser um clássico imediato, mas, no início de 2025 é o melhor lançamento das primeiras semanas, uma viagem no tempo que vale conferir.


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