Como publicado em CLAUDIA

O musical Emília Perez desperta sentimentos contraditórios nos brasileiros: por um lado, é visto como o ‘azarão’ nas premiações de Hollywood, com o potencial de fazer história; por outro, sua vitória poderia significar a perda de oportunidades tanto para o filme quanto para Fernanda Torres, que merecia pelo menos uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz. O fato de que Karla Sofía Gascón ter sido indicada ao SAG Awards e Fernanda não alimenta esse receio. Mas sabe o que é pior? Ela realmente entrega uma grande atuação, e seria injusto em ambos os cenários (se Fernanda for indicada ou não).

O musical Emília Perez é em sua essência estranho: um filme francês, com atores americanos, espanhóis, venezuelanos e porta riquenhos, mas com uma história mexicana. E novelão mesmo! Ela reconta a história de uma advogada idealista, Rita (Zoe Saldaña), que é escolhida pelo mais temido chefe do tráfico, Juan “Manitas” Del Monte (Karla Sofía Gascón) para ajudá-lo a se transformar em mulher. Manitas é casado com Jessi (Selena Gomez), com quem tem dois filhos e mesmo amando a esposa, quer ser verdadeiro com si mesmo e começar uma nova vida. Os problemas começam quando, já com sua nova identidade de Emília Perez, Manitas volta para as vidas de seus filhos e Jessi, sem conseguir evitar a tragédia como consequência de seus atos.

O maior ponto fraco, para mim, é que as músicas não são especialmente marcantes. No entanto, isso é amplamente compensado pelas atuações excepcionais de todos. E no coração de tudo está a personagem título. Vemos Manitas antes de virar Emilia: ele é assustador. Emilia é o seu oposto em tudo, doce, empática e preocupada em corrigir todos os erros de sua vida anterior. O problema está justamente no amor por seus filhos, que não apenas a expõe, como coloca em risco tudo que alcançou.

Obviamente outra falha da narrativa provocou controvérsias. É que o roteiro é superficial na representação de Emilia como uma mulher trans. Como homem, era um vilão cruel. Como mulher, é santa. Uma pessoa completamente diferente após sua cirurgia de redesignação de gênero. Verdade que não sabemos muito de Manitas mas quando ele ressurge mais tarde no filme, dá medo.

A verdadeira força de Emília Perez está na atuação de Karla Sofía Gascón. E, para entender completamente essa performance, é essencial conhecer um pouco mais sobre a trajetória dela. Enquanto Manitas, Karla é assustadora, ameaçadora e perigosa. E isso está nas suas cenas antes de Emilia, mas, mais importante, permanece quando ela transita pelos gêneros. Sim nos emociona e assusta em cada olhar e gesto.

Obviamente, o mundo se questiona como Karla Sofía era antes de transicionar. Tal qual sua personagem, Karla é casada com uma mulher e mãe de uma menina. Sua identificação como mulher é mais profunda e complexa. E corajosa porque ela já era famosa no seu país e no México, mas com seu nome de batismo: Carlos Gascón. É virtualmente impossível não ter a curiosidade para entender sua trajetória (e para alguns, sua aparência anterior). Tanto que a busca por Carlos Gascón aumentou na Internet com o sucesso do filme.

Karla, que nasceu em 31 de março de 1972 em Madri, tinha uma sólida carreira na TV e cinema tanto na Espanha como no México. Ainda como Carlos, estrelou um dos filmes mais bem sucedidos do México em 2013, Nosotros los Nobles e surpreendeu quando, cinco anos depois, anunciou sua transição de gênero. Sua esposa de quase 40 anos, Marisa Gutiérrez, se manteve ao seu lado e a filha dos dois, de 13 anos também. Marisa e Karla se conheceram quando tinham apenas 19 anos e o amor dos dois é incondicional.

Em 2024, Karla Sofía Gascón foi a primeira mulher trans a ganhar o prêmio de Melhor Atriz em Cannes, justamente por seu papel em Emilia Pérez. A grande diferença entre personagem e atriz está mesmo na conclusão dessa história que pode ser justamente no Oscar 2025.

Não vejo Karla Sofía vencendo, nem porque torço por Fernanda, mas porque está difícil de parar Demi Moore. Mas, se tudo puder ser perfeito: veremos Karla Sofía assim como Fernanda quebrando as barreiras da Indústria juntas. No meio tempo, fico feliz por seu sucesso.