Reinvenção ou Heresia? A Nova Branca de Neve e os Desafios dos Clássicos

Como publicado em CLAUDIA

Há quase 90 anos, Walt Disney fez história ao lançar o primeiro longa-metragem de animação, que levou anos para ficar pronto e rendeu muitas colunas. Ele hipotecou sua casa para terminar a produção, ganhou um Oscar especial e lançou um segmento lucrativo que até hoje é o carro-chefe da empresa. Para meninas ao redor do mundo, desde então, a mágica era ainda maior: havia uma princesa, um príncipe, uma rainha má, mas, acima de tudo, um final feliz. Embora tivesse outro conto de fadas em mente, Walt Disney elegeu a história imortalizada na narrativa dos Irmãos Grimm, Branca de Neve e os Sete Anões, e, com uma trilha sonora perfeita (a primeira a ser lançada comercialmente na história), alimentou a fantasia infantil de muitas gerações. Anos depois, surgiram Cinderela e a princesa Aurora, de A Bela Adormecida. Chamo as três de “trinca de ouro”, mas, quase um século depois, com o avanço do movimento feminista, as princesas “originais” foram se distanciando de seu público e, aos poucos, começaram a ganhar uma “atualização”.

Antes de revisar completamente as histórias, houve uma onda de reabilitação ou de dar destaque às antagonistas com estrelas famosas. Glenn Close foi Cruela Cruel, mas, essencialmente, ela continuava desequilibrada e má. Cate Blanchett trouxe outras camadas para a maldade da madrasta de Cinderela. Fora da Disney, Charlize Theron foi uma Rainha Má apavorante em Branca de Neve e o Caçador, enquanto Julia Roberts trouxe humor ao mesmo papel em Espelho, Espelho Meu. Porém, foi com a “repaginação” de Malévola, com Angelina Jolie, que a narrativa foi radicalmente alterada, retirando o protagonismo de Aurora até no título do filme, que deixou de ser A Bela Adormecida. Os valores atuais foram inseridos, mudando completamente a abordagem dos clássicos.

Ironicamente, a primeira foi a última, e Branca de Neve em live-action só passou a ser trabalhada em 2021, enfrentando críticas e fofocas muitos anos antes de chegar às telas. A espera chegou ao fim, e o filme está em cartaz, com uma Branca de Neve morena e de origem latina (Rachel Zegler) e uma Rainha Má (Gal Gadot) diferente da imagem europeia da animação. Nem preciso relembrar as reações de indignação antecipadas, que só pioraram quando Rachel fez comentários críticos à história original. Tudo isso contribuiu para uma certa ansiedade e preocupação quando fui ver o resultado nas telas. O veredito: é divisivo.

Eu gostei muito do que vi, mas é outro filme. Não é uma refilmagem, embora algumas sequências sejam uma reprodução fiel do desenho. A trilha sonora é original, a contextualização para a versão atual é feita (o nome Branca de Neve não é porque ela é branca como a neve, mas porque nasceu no meio de uma nevasca), e, ocasionalmente, especialmente com os anões, as canções clássicas foram mantidas. Sou insistente nisso: a falha principal do filme está na música.

Por que ela mudou? Porque, como Branca de Neve 2.5 nos avisa, uma princesa passiva não é uma líder ou exemplo para seus súditos ou meninas que a admirem. E não precisa colocá-la lutando ou sendo respondona, ou até impertinente: ela é doce, empática, mas não fica esperando por um príncipe que pede ao universo. Aliás, nem príncipe existe mais: seu par romântico é uma espécie de Robin Hood plebeu, que é salvo por ela e também a salva. Tudo muito fofo, e acreditem, encaixado. Não podemos ter a inocência de achar que crianças absorverão os valores por osmose. Há um papel educativo em alimentar inclusão, empatia e ação desde cedo. O espírito de Branca de Neve sempre foi esse e ele está preservado.

Muitas pessoas na plateia reclamaram que “havia música demais” e que, com isso, a previsibilidade se tornou inevitável. Mas, gente, o filme é para o público infantil e alinhado com essa meta. Tampouco é um problema. Aliás, o problema não é o filme nem o fato de Branca de Neve se recusar a acreditar em pedidos feitos em poços de água (a canção atual se chama Esperando por Um Desejo, onde ela reflete que “uma garotinha em um poço solitário” é, na verdade, uma prisioneira do patriarcado, desaparecendo e oprimida diante de padrões que não condizem com ela). O problema está em nós: a memória afetiva de um conto de fadas que refletia o mundo de 200 anos atrás não pode sobrepor a importância de ajustar a narrativa pensando nos próximos 200 anos.

Confesso que da “trinca de ouro”, sempre tive dificuldades de me conectar com Branca de Neve e sua vozinha infantilizada, sua maneira condescendente de lidar com os anões e animais da floresta. Cinderela foi forçada a trabalhar para a madrasta má, isolada em um mundo onde apenas os ratos faziam companhia, e Aurora cresceu como camponesa. Mas Branca de Neve, também vítima de abusos morais e físicos, não toma nenhuma decisão sobre sua vida: é maltratada, levada para a floresta para ser morta, escapa por sorte, é salva por animais, ajudada por anões e, finalmente, ressuscitada por um príncipe. Foi ao mesmo tempo incômodo e um alívio perceber que a nova versão reconhece que ser passiva não faz dela o exemplo que precisa ser.

Tendo em mente, então, que o novo Branca de Neve não busca desrespeitar o legado original, mas sim trazer uma visão mais alinhada com os tempos atuais, ele ressignifica o papel da princesa como agente de sua própria história. Embora a mudança de tonalidade e a quebra da estrutura tradicional possam gerar desconforto, elas são, na verdade, um reflexo da necessidade de renovação dos contos de fadas para que possam continuar a ensinar e inspirar as crianças do futuro. Afinal, os contos de fadas sempre foram sobre mais do que princesas e finais felizes; sempre foram sobre poder, identidade e transformação. E isso, mais do que nunca, é o que precisamos ensinar às próximas gerações.


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