Passadas algumas horas do final da temporada de The White Lotus, vale refletir sobre o produto de extrema profundidade e grandeza que Mike White nos entregou mais uma vez, com uma precisão única sobre o comportamento humano e suas consequências. Sem um final exatamente feliz, mas sempre realista e incômodo, o showrunner aborda mais uma vez os problemas da sociedade moderna, nos fazendo rir, chorar, temer, rejeitar, detestar e, finalmente, admitir que é incrível. Bravo.
Eu sei que, durante anos, falei que queria entender a trama de Greg/Gary Hunt, que entrou na vida de Tanya McQuoid na primeira temporada, conseguiu que ela morresse na segunda e, agora, aparentemente se livrou de perigos na terceira. Mas o “quem morreu”, mais do que o “quem matou”, é outra crítica que White faz ao nosso consumo desenfreado de true crimes e investigações. As dicas são claras — Chelsea passou a temporada implorando a Rick para não fazer besteira e que “azar vem em três”, mas, assim como a personagem fatal da vez, nos recusamos a fazer algo sobre o óbvio. Como diz Ben Stiller, “Mike White é um gênero em si mesmo e um gênio”.


A cada temporada, há um tema: no Havaí, ele abordou a questão de privilégios sociais e desigualdade, além do distanciamento entre gerações. Na Sicília, o foco estava nas relações sexuais e no lado escuro do luxo. E agora, na Tailândia, o tema foi religião, espiritualidade e morte. Eu até acrescentaria outro: a prisão emocional e psicológica de pessoas traumatizadas. Chelsea, com sua maturidade emocional, tentando entender e não julgar, foi surda aos apelos de Rick para que o deixasse e seguisse em frente. Ela tinha o complexo de salvadora e pagou com sua vida por não ter conectado os sinais ou sido prática, como ele recomendava. Uma personagem trágica que conquistou o mundo.
Aliás, a galeria de personagens femininas nesta temporada nos deixou com referências incríveis. Somos todas um pouco Chelsea, insistindo em relacionamentos nocivos? Ou somos bastante Laurie, cujo vazio das escolhas erradas a transformaram em uma pessoa amarga e confusa? Somos Kate, em sua falsidade e “bons modos”? Somos Jaclyn, correndo atrás da juventude? Somos Chloe, vivendo cada dia sem consequência? Somos Piper, buscando religião para preencher o vazio material? Ou somos Victoria, nos drogando e bebendo para amortizar os problemas que a cercam? Mais ainda, somos Belinda, que descobriu seu preço — 5 milhões de dólares — e jogou pela janela ética ou amor? Todas são incríveis.


Mas claro, a protagonista mais trágica foi justamente Chelsea, a “hippie doidinha” interpretada magistralmente por Aimee Lou Wood, agora descoberta por um público maior (mas já adorada por quem conferiu Sex Education). A jovem conectada e leitora ávida de autoajuda é a epítome da “heroína romântica” que só é trágica por fazer justamente tudo o que nós, mulheres, deveríamos evitar: achar que vai salvar alguém, especialmente o homem que amamos. Se Chelsea tivesse ouvido seus próprios conselhos, ou os de Rick (Walton Goggins), estaria viva e com um novo namorado. Mas, em sua arrogância inconsciente de se ver superior e espiritualizada, acabou morta.
Chelsea era 25 anos mais nova que Rick, um homem “problemático” e atormentado por fantasmas do passado (na crença de que teve “sua vida roubada” por um homem que matou seu pai), o que reflete um complexo de Édipo (ele era obcecado pela mãe). No caso de Chelsea, um complexo de Electra, por querer essa figura masculina mais velha, mesmo com jovens e outras opções ao seu lado.

Para piorar o cenário, Chelsea tinha o que se conhece como “complexo de salvador”, quando alguém sente que sua missão ou papel na vida é resgatar outra pessoa, muitas vezes de problemas emocionais, psicológicos ou até físicos. Assim como acontece nesses casos, ela manifestava uma crença profunda de que apenas ela teria a capacidade de mudar a vida de Rick, insistindo nisso mesmo quando todos os sinais eram claros (o principal deles sendo a picada de cobra venenosa que Rick mesmo tirou da gaiola) e, mais ainda, quando o namorado pediu várias vezes que ela o deixasse e, no dia fatal, que não o seguisse quando estava sendo perseguido por homens armados.
Nosso coração sente por Chelsea porque essa sensação de importância era “falsa”. Na verdade, em sua baixa autoestima, ela era codependente de Rick e de sua dor, e sua validação pessoal passou a ser externa, na figura dele. Não sabemos o suficiente sobre Chelsea ou como ela e Rick se conheceram, mas, para ela, a dor dele era mais viciante do que qualquer outra droga. Ela sentia que tinha a missão de fazer a diferença na vida do namorado, negligenciando suas próprias necessidades para focar exclusivamente nas de Rick.
Por que Chelsea, num desejo inconsciente de morrer, abraçou o destino violento de Rick? Eu, particularmente, culpo a cultura patriarcal, eternizada na literatura e no cinema com obras onde mulheres se sacrificam por amor.

Mike White é brilhante ao mostrar essa armadilha feminina sem rodeios. Como falei, em mais de um episódio Rick diz para ela deixá-lo, para encontrar outro que esteja pronto para amá-la como merece. Ele diz isso grosseiramente e carinhosamente, mas repete o pedido em mais de uma oportunidade, até a deixando no resort enquanto vai para Bangkok sozinho.
E Chelsea teve opções de “salvar” outro: Saxon, o jovem americano arrogante e igualmente ferido emocionalmente, em desesperada necessidade de “ajuda”. Ele consistentemente tenta se relacionar com Chelsea, que o rejeita por fidelidade a Rick. Há uma faísca que poderia ter sido salvadora, mas ela insiste no destino trágico. Dessa forma, sua morte simboliza a consequência extrema de sua busca incessante por salvar alguém que não queria ser salvo ou que, em sua realidade emocional, não estava pronto para ser salvo. Esse tipo de dinâmica disfuncional, onde ela se perde tentando mudar ou curar outra pessoa, pode ser perigoso tanto para ela quanto para o relacionamento. A morte de Chelsea, no contexto da narrativa, parece ser uma espécie de desfecho trágico para sua tentativa de mudar o impossível.

O que ficou bonito, na ficção, é que Chelsea e Rick morrem no momento em que estão tentando criar um espaço emocional para se abrirem e se transformarem, mas “tarde demais”, como o cinema adora mostrar. A tragédia também pode ser vista como um reflexo da desconexão de Chelsea com a realidade emocional do parceiro, além da idealização extrema que ela tinha sobre ele. Ela acreditava tanto em sua capacidade de salvá-lo que se tornou cega à realidade dos limites emocionais dele e à falta de reciprocidade. Sua morte simboliza a distorção da percepção da relação, onde ela não conseguiu enxergar que o parceiro nunca compartilharia o mesmo desejo de mudança ou evolução. No fundo, ela estava perdendo a si mesma no processo, o que se reflete na tragédia final de sua personagem.
A mensagem que podemos levar dessa história está relacionada à falta de limites emocionais. Chelsea estava profundamente envolvida emocionalmente, não apenas com o homem, mas também com a ideia de que podia curá-lo. Quando não conseguimos definir limites saudáveis, podemos nos perder nos outros, o que, em última análise, pode levar a um esgotamento emocional ou até mesmo a uma tragédia pessoal, como vimos com ela. Sua morte serve como um alerta sobre a importância de manter um senso de autonomia emocional e de não se perder na tentativa de “salvar” alguém.

A importância dessa metáfora dramática sobre os riscos da codependência e da busca incessante por controle sobre o outro é extremamente atual, porque a ideia de que o amor, por si só, pode curar traumas profundamente enraizados é perigosa. A perda de Chelsea é uma reflexão poderosa sobre a importância do autocuidado, do respeito às limitações do outro e do reconhecimento de que não podemos curar os outros sem primeiro cuidar de nós mesmos.
Podem reclamar à vontade sobre a terceira temporada, mas ela trouxe uma dimensão trágica e profunda à série. Depois, me debruçarei sobre os demais, mas hoje queria falar de Chelsea e Rick, que morrem dentro de um ciclo que reflete suas próprias vulnerabilidades e ilusões. Um sacrifício para ajudar a questionar as implicações emocionais de uma busca pela salvação de alguém emocionalmente indisponível. E que os sinais jamais devem ser ignorados.
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