Há uma ironia que uma das frases mais populares do último século seja atribuída ao pai da psicanálise, Sigmund Freud, que considerava um mistério insolúvel entender a alma feminina. E olha que ele nos ensinou a navegar pelo inconsciente humano! “A grande questão que nunca foi respondida, e que eu ainda não consegui responder, apesar dos meus trinta anos de pesquisa sobre a alma feminina, é: ‘O que uma mulher quer?'”, ele escreveu com ironia em 1933.
Como mulher, tenho certeza de que muitas de nós têm a resposta de que somos muito mais simples do que esperam. O problema está na expectativa patriarcal que atravessa milênios e, com o avanço do movimento feminista, se acentua. Mulheres só passaram a lutar por seus direitos no final do século 19 e, em pleno século 21, ainda temos muito o que avançar.
Curiosamente, dois “desabafos” femininos — um no cinema e outro na TV — impactaram não só as mulheres, mas também os homens, que agora têm a perspectiva maior de entender o que “as mulheres se sentem obrigadas a ser”. O monólogo de America Ferrera em Barbie (2023), que a levou a uma indicação ao Oscar, é um exemplo disso. Sua fala explora a reflexão crítica sobre as expectativas de perfeição feminina impostas ao longo da história, especialmente no contexto da cultura de consumo e da indústria da moda e beleza.


Em The White Lotus, no episódio final da terceira temporada, a personagem de Carrie Coon, Laurie, apresenta outro monólogo poderoso. A personagem se vê em uma crise existencial, mais introspectiva, mas com um foco similar na busca por sentido à medida que envelhecemos. Durante uma conversa com amigas, Laurie revela que tentou preencher um vazio com várias “religiões” pessoais — o trabalho, o amor, a maternidade — mas todas falharam. Ela compartilha que perdeu a fé nessas formas de busca de sentido e agora se encontra à deriva, sem um sistema de crenças que a guie. O momento foi tão impactante que foi impossível não se emocionar com a entrega sincera da atriz.
Greta Gerwig e Mike White merecem todos os elogios pela sensibilidade e precisão de colocarem as palavras exatas e os sentimentos de suas personagens em contextos tão palpáveis. Ambos os monólogos exploram a crise existencial que muitas mulheres enfrentam ao tentar equilibrar suas identidades pessoais com os papéis impostos pela sociedade. A luta de Barbie para entender sua identidade sem ser limitada pela perfeição imposta e a epifania de Laurie, que descobre que não precisa de grandes justificativas externas para dar sentido à sua vida, são exemplos de uma busca comum: encontrar liberdade e autenticidade em um mundo que exige conformidade.
Expectativas Femininas: A Sobrevivência Sob um Padrão Impossível
O monólogo escrito por Greta Gerwig em Barbie reflete uma ideia que já foi expressa na canção de Madonna, What It Feels Like for a Girl (2000), mas no cinema, isso se torna ainda mais claro e certeiro. Vale lembrar palavra por palavra:
“É literalmente impossível ser mulher. Você é tão linda e tão inteligente, e me mata saber que você não se acha boa o suficiente. Tipo, temos que ser sempre extraordinárias, mas de alguma forma estamos sempre fazendo errado.

Você tem que ser magra, mas não magra demais. E você nunca pode dizer que quer ser magra. Você tem que dizer que quer ser saudável, mas também tem que ser magra. Você tem que ter dinheiro, mas não pode pedir dinheiro porque isso é grosseiro. Você tem que ser chefe, mas não pode ser má. Você tem que liderar, mas não pode esmagar as ideias dos outros. Você deveria amar ser mãe, mas não falar dos seus filhos o tempo todo. Você tem que ser uma mulher de carreira, mas também estar sempre cuidando dos outros.
Você tem que responder pelo mau comportamento dos homens, o que é insano, mas se você apontar isso, será acusada de reclamar. Você deve ser bonita para os homens, mas não tão bonita a ponto de tentá-los demais ou de ameaçar outras mulheres porque você deveria fazer parte da irmandade.
Mas sempre se destaque e seja sempre grata. Mas nunca se esqueça de que o sistema é manipulado. Então, encontre uma maneira de reconhecer isso, mas também seja sempre grata.
Você nunca deve envelhecer, nunca ser rude, nunca se exibir, nunca ser egoísta, nunca cair, nunca fracassar, nunca demonstrar medo, nunca sair da linha. É muito difícil! É muito contraditório e ninguém lhe dá uma medalha ou agradece! E acontece que, na verdade, você não só está fazendo tudo errado, como também tudo é culpa sua.
Estou tão cansada de ver a mim mesma e a todas as outras mulheres se complicando para que as pessoas gostem de nós. E se tudo isso também é verdade para uma boneca que representa apenas mulheres, então eu nem sei..”
Essas palavras são um reflexo claro de como as mulheres são sobrecarregadas com um conjunto de expectativas contraditórias e inatingíveis. Barbie, assim como tantas mulheres, se vê lutando para atender aos padrões de perfeição e, finalmente, percebe que essa busca é um ciclo vicioso e autodestrutivo.

Laurie, em The White Lotus, está em um estágio em que já tentou várias formas de encontrar um sentido para sua vida. Ela confessa:
“É engraçado porque, para ser sincera, passei a semana toda tão triste. Sinto que minhas expectativas eram muito altas, ou… sinto que, à medida que envelhecemos, precisamos justificar a vida, sabe? E as escolhas. E quando estou com vocês, é como… tão transparente quais foram as minhas escolhas. E os meus erros. Não tenho um sistema de crenças, e eu… bem, quero dizer, tive muitos deles, mas… quero dizer, o trabalho foi minha religião para sempre, mas definitivamente perdi a fé nele. E então, e então, tentei o amor, mas era apenas uma religião dolorosa que piorou tudo. E mesmo para mim, assim como ser mãe, isso também não me salvou. Mas tive uma epifania hoje: não preciso de religião nem de Deus para dar sentido à minha vida. Porque o tempo dá sentido. Nós, nós começamos esta vida juntos. Quer dizer, estamos passando por isso separados, mas ainda estamos juntos, e eu, eu olho para vocês, e parece significativo. E eu não consigo explicar, mas mesmo quando Estamos sentados em volta da piscina conversando sobre qualquer coisa idiota, parece muito profundo. Fico feliz que você tenha um rosto bonito. E fico feliz que você tenha uma vida linda. E estou feliz só de estar à mesa.”
Esse trecho revela como Laurie, depois de tantas tentativas de preencher o vazio com trabalho, amor e maternidade, se vê agora sem respostas prontas. O momento de epifania de Laurie, em que ela reconhece que não precisa de justificativas externas para dar sentido à sua vida, é uma poderosa liberação. Ao afirmar que “o tempo dá sentido” à vida, ela nos lembra da importância dos momentos simples e das conexões genuínas.

A Jornada Para a Liberdade
Ambos os monólogos, embora em contextos diferentes, falam sobre a libertação das expectativas externas e a necessidade de redefinir a identidade feminina em uma perspectiva mais realista e humana. Eles refletem a luta do feminismo contemporâneo para quebrar os moldes tradicionais e permitir que as mulheres encontrem sua própria identidade, sem se submeter a ideais irrealistas. Barbie e Laurie, cada uma à sua maneira, nos mostram que ser mulher não é atender a um padrão, mas sim aceitar a própria humanidade, com todas as suas falhas e contradições. Afinal, no final das contas, só queremos ser nós mesmas, sem precisar justificar a nossa existência para ninguém. Simples. E tão complexo.
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