Para entender a complexidade de Uma Família Perfeita (Good American Family), série da Star+ estrelada por Mark Duplass e Ellen Pompeo, é preciso estar familiarizado com a história real por trás da trama — confusa, estranha e assustadora. Lembro que, ainda em 2019, escrevi sobre Natalia Grace para a CLAUDIA e rapidamente percebi que ali havia uma história com potencial para um filme de terror — e, sim, uma história profundamente dramática.

Hoje, há documentários, reality shows e, agora, a série. É uma narrativa peculiar, que envolve temas como adoção, medicalização e alegações de engano, elementos que chamaram a atenção da mídia e do público.
A história de Natalia, uma órfã ucraniana, começou quando a família Baranov, da Rússia, decidiu adotá-la. Supostamente, ela tinha seis anos na época. No entanto, à medida que os eventos se desenrolaram, o que parecia ser uma história comum de adoção se transformou em um mistério envolto em controvérsias. Em 2010, Natalia Grace foi adotada por Michael e Kristine Barnett, um casal do estado de Indiana, nos EUA. Segundo o casal, foram tocados pela trágica história de vida da menina, que supostamente havia sofrido abusos e negligência.
Os Barnett tinham três filhos biológicos: Jacob, Wesley e Ethan. A história de Jacob, que é autista e começou a faculdade com apenas 10 anos de idade, foi contada por Kristine em um livro de sucesso, The Spark: A Mother’s Story of Nurturing, Genius, and Autism.

Desde o início, o relacionamento com Natalia foi estranho. Kristine começou a suspeitar que a menina estava mentindo sobre sua idade. Em vez de seis ou sete anos, acreditava que Natalia teria mais de vinte e estaria fazendo ameaças — escondeu facas no quarto e até tentou envenenar o café de Kristine com detergente.
Dois anos após a adoção, o casal entrou com uma petição para alterar legalmente a idade de Natalia para 22 anos. A mudança foi aprovada com base nas estimativas feitas por um clínico geral e uma assistente social.
Logo depois, Kristine e Michael se mudaram para o Canadá com os três filhos, deixando Natalia sozinha em um apartamento em Lafayette. Eles alegaram que a ajudavam financeiramente. Mas, nesse ponto, a narrativa se inverte: Natalia passou a afirmar que foi vítima de abusos por parte de Kristine. As condições no apartamento eram precárias — ela não conseguia alcançar o fogão, as prateleiras ou a caixa de correio, e não tinha telefone para pedir ajuda. Os vizinhos logo perceberam que havia algo errado.
Os Barnett alegaram estar apenas tentando proteger a si mesmos, pois acreditavam estar lidando com uma pessoa perigosa. A pressão das circunstâncias abalou profundamente o relacionamento do casal, que se separou em 2019. Ambos contestaram as acusações de negligência e conspiração para negligência com dependente. Michael foi inocentado em 2022 e, em março de 2023, todas as acusações contra Kristine foram retiradas.

O caso de Natalia Grace virou um verdadeiro fenômeno da mídia. Em 2022, foi lançado o documentário The Curious Case of Natalia Grace, que ofereceu uma abordagem mais ampla e investigativa sobre o que realmente aconteceu. A obra trouxe à tona dilemas morais enfrentados por pais adotivos, complexidades relacionadas à saúde mental e os desafios vividos por crianças adotadas. Michael continua morando em Indianapolis, mas o paradeiro de Kristine é desconhecido. Natalia foi adotada por vizinhos, os Mans, mas logo os acusou também de abuso. Atualmente, vive com Nicole e Vincent DePaul, um casal com nanismo que havia tentado adotá-la já em 2009.
A série Uma Família Perfeita (Good American Family), é manipulativa — no melhor sentido. Os quatro primeiros episódios são conduzidos sob a ótica de Kristine, o que nos convence de que a família Barnett corria perigo com Natalia. Ellen Pompeo, em um papel complexo e radicalmente diferente de sua atuação em Grey’s Anatomy, está excelente como a controversa Kristine. Mark Duplass também entrega uma performance precisa como o verdadeiro Michael. Mas quem realmente brilha é Imogen Faith Reid no papel de Natalia.
A grande virada acontece a partir do quinto episódio, quando a narrativa passa a ser contada do ponto de vista da menina, como sugerido pelo documentário, e reverte toda a lógica anterior. Sem o andador e incapaz de cuidar de si mesma, Natalia Grace deixa de ser retratada como uma golpista maníaca disposta a destruir uma família e passa a ser vista como uma criança desesperada para pertencer a uma família — e rejeitada por ser diferente.

Essa mudança de perspectiva é talvez a principal virtude da série, justamente por refletir a complexidade extrema do caso. Ao nos convidar a acreditar em Natalia, a história se torna ainda mais assustadora. Durante os processos judiciais, foi confirmado que ela era, sim, uma criança na época da adoção. Ou seja: quando foi deixada sozinha, tinha apenas cerca de oito anos. Permaneceu nesse apartamento por quase um ano antes de se mudar para outro, enfrentando as dificuldades com apoio limitado e a ajuda esporádica de vizinhos e membros da igreja.
O caso de Natalia Grace expõe com dureza as falhas dos sistemas de adoção, de justiça e de assistência social. Ao mesmo tempo, levanta uma pergunta que a série consegue dramatizar com precisão desconcertante: quem acreditamos ser o vilão quando a verdade é ambígua, fragmentada e dolorosa? Uma Família Perfeita (Good American Family), não nos dá respostas fáceis, mas nos força a questionar o quanto estamos dispostos a ouvir — e acreditar — na dor do outro, especialmente quando ela vem de alguém que, à primeira vista, não parece “encaixar” em nenhuma narrativa convencional.
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