Entre as muitas obras que compõem o cânone do balé clássico, poucas possuem o poder criativo, emocional e simbólico de O Lago dos Cisnes. Você pode perguntar à Inteligência Artificial para te traduzir em números quantas montagens ao redor do mundo acontecem por ano e a resposta é: “é impossível dar um número exato de apresentações de “O Lago dos Cisnes” em todo o mundo”.
Sem números exatos para traduzir a popularidade de quase 150 anos, ainda vale se debruçar para avaliar a magia que há em uma história forte, por sua mistura de conto de fadas e tragédia. onde a princesa é transformada em cisne por um bruxo que se disfarça de coruja. Diante desse resumo simplista seria complexo explicar que embora tenha enfrentado críticas e quase fracasso em sua estreia, O Lago dos Cisnes seja ainda hoje em dia o balé mais popular da história. Ele ocupa esse posto não só por sua frequência em palcos ao redor do mundo, mas também por seu impacto cultural, sua trilha sonora reconhecível, e pela profundidade emocional e técnica exigida de seus intérpretes.

Desde sua estreia em 1877, na Rússia czarista, até suas inúmeras remontagens contemporâneas, essa narrativa de amor, feitiçaria e metamorfose permanece um enigma que o público insiste em revisitar — e, talvez, jamais decifrar por completo. Mas por que O Lago dos Cisnes exerce tamanho fascínio? Por que continua sendo o balé mais encenado e reconhecido do repertório clássico, atravessando séculos, fronteiras e estéticas?
A resposta não está apenas na beleza da partitura de Tchaikovsky — embora esta seja, por si só, uma das mais poderosas já compostas para dança. Tampouco se limita à coreografia tradicional de Marius Petipa e Lev Ivanov, com seus conjuntos simétricos e suas exigências técnicas quase sobre-humanas. O que verdadeiramente move o imaginário coletivo é a força simbólica do que O Lago dos Cisnes representa: um espelho da dualidade humana, uma metáfora da busca por autenticidade em um mundo de aparências e um retrato poético do feminino como território de sacrifício e desejo.
O Mito da Cisne: Pureza, Aprisionamento e Transformação
No cerne do balé está Odette, a princesa transformada em cisne por um feiticeiro, condenada a viver entre mundos — nem totalmente humana, nem completamente ave. A imagem do cisne, ser de graciosidade melancólica, já traz em si um paradoxo que ressoa com os dilemas humanos: leveza e peso, liberdade e cativeiro, beleza e fragilidade. Odette é pureza enclausurada, amor impossível, corpo que dança mesmo quando ferido pela maldição do outro.
Sua sombra, Odile — o cisne negro — representa a face oposta: sedução, ilusão, impostura. Quando o Príncipe Siegfried se deixa enganar por Odile, acreditando que ela é Odette, consuma-se a traição arquetípica: a escolha da aparência em detrimento da essência. É nesse gesto que O Lago dos Cisnes deixa de ser apenas um conto romântico para se tornar uma tragédia profundamente moderna. O amor não basta. O olhar falha. E o mundo, regido por aparências, é palco de condenações irreversíveis.

Técnica, Corpo e Arrebatamento
Graças à Petipa e Ivanov, o balé exige da bailarina uma proeza simbólica: ser dois corpos em um. Odette e Odile não são apenas personagens opostas — são opostos emocionais, técnicos e cênicos. Odette exige fluidez, braços que ondulam como asas, uma musicalidade interiorizada. Odile exige precisão, força, magnetismo e domínio absoluto de tempo e espaço, como nos célebres 32 fouettés do terceiro ato.
Ao exigir essa cisão performática, o papel da cisne branca/preta não apenas consagra bailarinas tecnicamente brilhantes — ele as transforma em ícones. Grandes nomes como Galina Ulanova, Natalia Makarova, Maya Plisetskaya, Margot Fonteyn e, mais recentemente, Svetlana Zakharova, Misty Copeland e Marianela Núñez foram eternizadas não apenas por interpretar o papel, mas por incorporar esse abismo interno entre a mulher-cisne e a mulher-fantasma.

O público, por sua vez, vive o transe dessa transformação. Cada movimento da bailarina parece traduzir um sentimento ancestral — aquele em que o corpo ainda é a linguagem mais pura da alma. A catarse final, seja com a morte dos protagonistas ou sua ascensão simbólica, é tanto estética quanto existencial: se não podemos amar no mundo real, ao menos podemos morrer juntos no reino do imaginário.
Espelhos da Modernidade
A persistência de O Lago dos Cisnes ao longo do tempo também se deve à sua maleabilidade simbólica. Diversas releituras modernas exploraram a fluidez de gênero, o conflito entre desejo e identidade, a crítica ao espetáculo. A remontagem de Matthew Bourne, por exemplo, com cisnes homens em lugar das tradicionais bailarinas, subverteu as convenções do balé clássico para falar de repressão e sexualidade no universo masculino.
Já Cisne Negro, filme de Darren Aronofsky, usou o balé como metáfora da fragmentação psíquica, da pressão pela perfeição e da destruição do eu diante da arte. Natalie Portman – que ganhou o Oscar de Melhor Atriz – não interpreta apenas Nina, mas todas as mulheres-cisnes que já existiram: aquelas que se dobraram até o limite da forma, que confundiram corpo e sacrifício, que foram consumidas pela beleza que encenavam.

Essas leituras contemporâneas não esgotam O Lago dos Cisnes — apenas reforçam sua potência. O balé sobrevive porque fala daquilo que não se resolve, daquilo que escapa. O que há, afinal, de mais atemporal do que amar alguém e não poder tocá-lo? Do que ser traído pelo olhar do outro? Ou do que desejar ser livre e, ao mesmo tempo, não saber onde está a porta de saída?
Ecos do Passado: História e Transformação de um Clássico
Apesar de hoje ser sinônimo de excelência e romantismo no balé, como mencionado O Lago dos Cisnes teve uma estreia nada promissora. A primeira montagem, em 1877, no Teatro Bolshoi de Moscou, com coreografia de Julius Reisinger, foi um fracasso tanto de crítica quanto de público. A produção era considerada confusa, e nem mesmo a música — hoje reverenciada — foi compreendida em sua profundidade.
Foi apenas após a morte de Tchaikovsky, em 1895, que O Lago dos Cisnes encontrou sua forma canônica. Sob a direção dos mestres Marius Petipa e Lev Ivanov, a nova coreografia, encenada no Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, consolidou a estrutura em quatro atos e estabeleceu os códigos que ainda hoje são preservados: os grandes adágios, os pas de deux simétricos, o corpo de baile em formação de cisnes — imagem que se tornaria ícone da dança clássica.

A partitura de Tchaikovsky foi também retrabalhada para essa versão. Com sua orquestração lírica e ao mesmo tempo dramática, ela alterna entre temas sombrios e etéreos, usando leitmotivs (motivos condutores) para caracterizar os personagens. O tema de Odette, por exemplo, é introduzido com harpas e cordas em tons menores, enquanto Odile é acompanhada por passagens mais incisivas, quase marciais. A música não acompanha a cena — ela a sugere, a antecede, a intensifica. Tchaikovsky não escreveu apenas música para dançar: escreveu música para sofrer.
O Corpo de Baile: Simetria como Drama
Diferente de outras obras do repertório clássico, onde o corpo de baile tem função decorativa ou estrutural, em O Lago dos Cisnes ele adquire protagonismo simbólico. As 24 bailarinas que interpretam os cisnes não são apenas pano de fundo: são o próprio mundo de Odette. São sua prisão e sua companhia, sua natureza e sua maldição.
A geometria da coreografia — linhas, espelhamentos, canons — reforça visualmente a temática do duplo, da repetição e da clausura. Cada braço que se curva, cada arabesque sincronizado, parece dizer: “não há saída”. A dança dos cisnes é, assim, um retrato do coletivo oprimido, da beleza disciplinada, da sensibilidade regimentada.
Essa estética também ressoou em linguagens visuais posteriores: da fotografia de moda aos videoclipes pop, a imagem do “exército de cisnes” se tornou ícone de feminilidade, melancolia e poder silencioso.

Psicanálise e o Lago Interior
Não é surpresa que O Lago dos Cisnes tenha se tornado um prato cheio para a psicanálise e para leituras simbólicas profundas. A figura do duplo — Odette/Odile — remete à cisão do Eu, à sombra junguiana, à duplicidade entre o desejo e a repressão. O lago, por sua vez, pode ser lido como o inconsciente: profundo, misterioso, regido por leis que escapam à razão. Odette emerge desse lago como uma projeção do ideal feminino: bela, trágica, intocável.
Siegfried, o príncipe sonhador, busca nesse lago o que o mundo real não lhe oferece — talvez, inclusive, a si mesmo. Sua queda na armadilha de Odile é uma queda no narcisismo, na ilusão do controle. Ele escolhe o simulacro, a imagem distorcida. A tragédia final — a morte, a dissolução no lago — é também uma forma de reintegração: o retorno ao inconsciente, ao princípio, à verdade perdida.


A Bailarina como Arquétipo
A bailarina que dança O Lago dos Cisnes não interpreta apenas um papel: ela se torna um arquétipo. Não por acaso, a imagem da bailarina em tutu branco, braços arqueados, cabeça levemente tombada, é uma das mais reproduzidas da cultura ocidental. Em um mundo que transforma o corpo feminino em espetáculo, O Lago dos Cisnes transforma esse espetáculo em poesia. Mas uma poesia que cobra caro.
O papel de Odette/Odile é fisicamente extenuante. Exige domínio técnico absoluto, mas também uma entrega emocional rara. A bailarina está o tempo todo se dissolvendo entre o humano e o animal, entre a doçura e a perversão, entre o gesto e o afeto. Não é à toa que muitas bailarinas veem nesse papel o auge — e o limite — de suas carreiras. É uma travessia. Sem surpresa, para que a bailarina se torne ballerina ela precisa ter O Lago dos Cisnes no seu repertório: faz parte do ritual de passagem.
O Cisne Somos Nós
Assistir a O Lago dos Cisnes é mais do que consumir uma obra de arte: é se ver refletido nela. A dualidade entre Odette e Odile existe em todos nós. O desejo por liberdade e o medo da solidão. A busca por amor verdadeiro e a entrega às ilusões mais perigosas. O anseio por leveza num mundo que exige peso.

Talvez seja por isso que, geração após geração, voltamos ao lago. Sabemos o final. Sabemos que dói. Mas ainda assim, queremos ver o cisne dançar. Porque ali, entre o plié e o último gesto antes da queda, há algo que nos lembra que, mesmo cativos, ainda somos belos. E que, ao menos no palco, a dor pode ser transformada em voo.
O Cisne Não Morre
Se O Lago dos Cisnes ainda é encenado em teatros do mundo inteiro, lotando plateias e emocionando gerações, é porque não estamos falando apenas de um balé: estamos falando de uma fábula essencial. Uma fábula que nos lembra que a beleza é sempre transitória, que o amor exige reconhecimento mútuo e que o corpo é o primeiro campo de batalha entre o ser e o parecer.


Mais do que um espetáculo visual, O Lago dos Cisnes é um ritual — onde a plateia vê no palco não apenas uma bailarina girando em tutu branco, mas algo que pulsa nas profundezas da alma humana. O cisne, afinal, não é apenas a personagem. O cisne é cada um de nós, tentando dançar enquanto cai.
Em tempo: a nova temporada da obra no Theatro Municipal do Rio de Janeiro estreia em maio, trazedo pela primeira vez aos palcos a estrela do Royal: Mayara Magri. Falaremos mais sobre esse clássico de 150 até lá. E depois, claro.
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