Como Gethsemane Transformou o Teatro Musical

Entre as muitas canções que compõem o repertório do teatro musical, poucas alcançam o patamar dramático e vocal de Gethsemane (I Only Want to Say), peça central da ópera rock Jesus Christ Superstar. Composta por Andrew Lloyd Webber (música) e Tim Rice (letra), a canção dá forma ao momento mais íntimo e dilacerante da trajetória de Jesus: sua agonia solitária no Jardim do Getsêmani, quando, diante da iminência da morte, ele questiona, hesita e, por fim, aceita.

Criada originalmente como parte do álbum conceitual lançado em 1970, Gethsemane tornou-se rapidamente um marco dentro do musical que revolucionaria o gênero. Jesus Christ Superstar, levado aos palcos no ano seguinte, propôs uma releitura ousada dos últimos dias de Cristo através da linguagem do rock, aproximando o sagrado do humano, o divino da dor visceral.

Na canção, Jesus não aparece como uma figura inatingível, mas como um homem tomado por dúvidas, em diálogo direto com Deus, ora suplicando, ora confrontando. “I only want to say / If there is a way / Take this cup away from me”, canta ele, em versos que oscilam entre a oração e o desespero. A tensão cresce até alcançar um clímax catártico, com agudos extremos e um grito que se tornou assinatura da obra. Musicalmente, Gethsemane exige um domínio técnico notável, com extensão vocal que ultrapassa o G5, respiração precisa e, sobretudo, entrega emocional total.

Não à toa, é considerada uma das canções masculinas mais difíceis do teatro musical. Interpretá-la vai além do canto — é preciso habitar cada palavra, expor a alma. Os bastidores dessa dificuldade estão também na história da própria criação: Webber compôs a melodia com influências claras do rock psicodélico da época, e o primeiro a dar voz a esse Jesus conflituoso foi Ian Gillan, vocalista da banda Deep Purple, no álbum original. Gillan nunca chegou a interpretar o papel nos palcos, mas sua gravação permanece uma referência fundamental pela força e crueza vocal.

Ao longo das décadas, muitos intérpretes se arriscaram a escalar essa montanha musical. Entre os mais célebres estão Ted Neeley, cuja performance no filme de 1973 é até hoje lembrada por seu grito final antológico. Curiosamente, Neeley jamais se despediu de Jesus: continuou se apresentando no papel em turnês e concertos ao longo de décadas, mesmo após os 70 anos de idade. Sua longevidade artística impressiona — e emociona. Para muitos fãs, vê-lo ainda hoje interpretando Gethsemane é testemunhar a fusão entre personagem e intérprete, em uma entrega quase mística.

Ao longo das décadas, muitos intérpretes se arriscaram a escalar essa montanha musical. Entre os mais célebres estão Ted Neeley, cuja performance no filme de 1973 é até hoje lembrada por seu grito final antológico; Steve Balsamo, cuja interpretação em Londres, em 1996, é tida por muitos como definitiva; além de nomes como Ben Forster, Gethin Jones e até Adam Lambert, que em diferentes contextos trouxeram nova luz à peça.

No Brasil, o ator Igor Rickli interpretou Jesus em uma montagem nacional e encarou com coragem o desafio vocal e interpretativo da canção.

É comum que fãs associem Gethsemane a outros nomes consagrados do teatro musical, como Michael Crawford, Michael Ball e Colm Wilkinson, mas há algumas distinções importantes a fazer. Crawford, imortalizado como o primeiro Fantasma da Ópera, e Ball, referência em produções como Les Misérables, nunca interpretaram oficialmente essa canção.

Colm Wilkinson, com sua voz poderosa e marcante, tem registros esporádicos cantando trechos de Gethsemane em concertos e especiais, mas não protagonizou o papel de Jesus em montagens completas. Seu nome é frequentemente lembrado por fãs por sua performance como Judas em versões concertísticas e, sobretudo, por seu legado como Jean Valjean — outra montanha vocal do teatro musical.

Mas o poder de Gethsemane não reside apenas na sua complexidade técnica. O que a torna inesquecível é a forma como traduz, em som, a vulnerabilidade de uma figura acostumada à perfeição. É uma oração que sangra. Uma dúvida que ecoa. Um momento de crise de fé que, paradoxalmente, reafirma o sacrifício. Talvez por isso, mesmo tantos anos depois de sua criação, ela siga reverberando — nos palcos, nos fones de ouvido e nas emoções de quem se permite escutá-la de verdade


Descubra mais sobre

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário