Como publicado na Revista Bravo!
Ao longo de cinco décadas, o Grupo Corpo se consolidou como um dos maiores nomes da dança brasileira, conquistando um reconhecimento internacional notável pela sua inovação e autenticidade. No contexto das celebrações dos 50 anos da companhia, a Revista Bravo! conversou com Rodrigo Pederneiras, coreógrafo e uma das figuras centrais do grupo, oferece uma visão fascinante sobre a evolução artística da companhia.
Nessa conversa, Pederneiras reflete sobre as diferentes fases de sua trajetória, desde os primeiros trabalhos coreografados por Oscar Araiz, até a busca por uma linguagem própria e inconfundível, fundamentada em influências musicais e culturais brasileiras. Com a sinceridade de quem passou por diversos desafios e transformações, ele compartilha também sua paixão pela música e como ela sempre foi a base de seu processo criativo, permitindo que dança e música se tornassem uma expressão única e harmônica.

BRAVO! Como que você vê a evolução do grupo nessas cinco décadas, assim, de forma artística e no reconhecimento internacional.
RODRIGO PERDENEIRAS
É muito tempo. Eu acho que a gente pode pensar em três fases diferentes durante esses 50 anos. A primeira fase com Maria Maria, Último Trem, trabalhos mais narrativos coreografados por Oscar Araiz. Na época eu era só bailarino. Foi a primeira fase. Depois dos anos 1980s, quando a gente começou a assumir mesmo a parte artística [Rodrigo e seu irmão, Paul0]. Porque o que que acontecia? O Oscar vinha e trazia iluminador, figurinista, cenógrafo e tudo mais, e a gente não tinha controle sobre a criação da companhia. Então, nos anos 1980s, a gente começou a assumir esses papéis e foi um período de muito de aprendizado mesmo. Porque a gente trabalhava com o material que a gentetinha: as músicas dependiam do estava ouvindo na época. E a vida inteira eu escutei música clássica, desde que eu entendo por gente. Então, a gente começou a trabalhar primeiro com os compositores clássicos brasileiros, depois a gente começou a abrir o leque, passamos para Chopin, Mozart, Strauss, etc. E no início da década de 1990, começou um pouco antes com Missa do Orfanato, mas que começou a nossa mudança mesmo. Ali que começou a descoberta da nossa maneira de ser, da nossa maneira de fazer.
BRAVO!
Então…
RODRIGO PERDENEIRAS
Eu acho que o divisor de águas foi em 1992 com 21, com música do Uakti e Marco Antônio Guimarães, quando começamos a convidar os compositores para criar. Isso deu um salto impressionante para nós porque eles vinham com ideias novas, que nós não tínhamos, e a gente foi se deixando influenciar por eles. Então, a partir daí, nós começamos a criar uma linguagem própria, uma linguagem agregando elementos brasileiros às peças. Essas três fases eu acho que são muito claras na nossa trajetória, sendo que a dos anos 1990s foi a que nos fez ser quem somos mesmo hoje.
BRAVO!
Vou dar um passo atrás: você era bailarino e depois já assumiu o lado artístico da criação. Como é que foi essa transição? Porque quando a gente vê o Grupo Corpo tem uma linguagem única que é uma assinatura. Mas como é que é esse processo criativo pra você?
RODRIGO PERDENEIRAS
Na verdade, quando comecei a fazer dança, logo de cara, conheci o Oscar [Araiz], e ia muito pra Buenos Aires pra fazer aula com a companhia do Oscar, mas desde sempre queria coreografar. Comecei por conta própria, para companhias amadoras, para escolas, incluindo a nossa. Fui desenvolvendo ao longo do tempo mesmo. Como eu falei, os anos 1980s foram os anos de aprendizado total por isso a passagem se deu de uma forma muito tranquila, porque eu queria mesmo era ser coreógrafo, mais do que ser bailarino.
BRAVO!
Eu acho fascinante quando a gente vê o conjunto, ainda mais do que os solos, como tudo é ligado. Isso está na música?
RODRIGO PERDENEIRAS
Sim, está na música. A minha paixão sempre foi música. Aprendi a coreografar ouvindo música e foi uma coisa muito relevante na minha trajetória, na minha carreira, sabe? Porque sinto que música e dança e coreografia, essa coisa espacial que você falou, tem que ser uma coisa só. Não tem que ser uma coisa superando a outra, elas têm que se irmanar. É a tentativa. Às vezes a gente consegue, às vezes não. [risos]
BRAVO!
Tinha uma época, e isso era bem um diferencial da dança clássica onde a narrativa era essencial, mas havia o “sinfônico”, mas George Balanchine, por exemplo, detestava que chamasse os balés dele de sinfônicos. Mas aí você está falando que a dança vem da música. Existe uma história, início, meio e fim, pra você, na sua cabeça, quando você coreografa uma sinfonia completa, ou é só sentimento?
RODRIGO PERDENEIRAS
Não: história com início, meio e fim, não tem, mas existe uma ideia central, que eu persigo o tempo todo. Antes de começar, essa ideia central tem que estar bem amadurecida, tá bem maturada para o trabalho deslanchar legal. Não acho que dança seja uma forma de arte que se preste muito à narrativa. Já que você citou Balanchine, ele falava: dança não é o teatro, não é a palavra. É preciso encontrar esse outro caminho, essa outra veia da dança, de forma que ela chegue às pessoas, mas sem estar contando uma história. Ela chega porque ela é fundamental. Mas, mais uma vez, às vezes a gente consegue, às vezes não consegue. Costumo dizer que o barato da dança é muito difícil porque emocionar pessoas é muito difícil. Se você consegue criar novas sensações, fazer com que as pessoas sintam coisas novas, aí é um grande barato.
BRAVO!
Quais foram os principais desafios nessas cinco décadas?
RODRIGO PERDENEIRAS
Convivência. O lado financeiro também é sempre muito difícil. São 22 bailarinos, todos têm carteira assinada, férias, 13º, plano de saúde e tudo e por isso o lado financeiro é muito pesado. Mas a gente sempre priorizou os bailarinos. Às vezes nos momentos mais difíceis financeiramente, que eram mais complicados, quem ficava sem receber éramos nós, os sócios. Ou quando atrasava, para os bailarinos nunca. Eles são importantes. Primeiro eles, segundo eles, terceiro eles. Depois, quem sabe, a gente pensa em outras coisas.
BRAVO!
São cinco décadas e quantas gerações? Relações construídas, pessoais, ao longo dessa jornada?
RODRIGO PERDENEIRAS
Tem. Estou no meu terceiro casamento, fui casado com três bailarinas. [risos] Acho que isso já mostra alguma coisa nessa relação. Muita viagem junto, a convivência muito estreita, porque a gente sempre viajou muito. Às vezes nós passamos sete meses do ano viajando. Na estrada, essa convivência vai se estreitando, mas nem sempre é fácil. A base de tudo é o respeito, sabe? Se existe o respeito de verdade, as coisas são muito mais fáceis, são muito mais tranquilas.

BRAVO!
E existe algum espetáculo mais marcante, algo de bastidores que tenha te marcado mais?
RODRIGO PERDENEIRAS
Houve uma situação em Lyon. Às vezes nós fazíamos até três semanas de apresentações em Lyon, na Maison de La Danse e fomos a única companhia do mundo que já fez isso. Mas em Lyon aconteceu um caso que eu acho que é genial, que nos emocionou. Nós fizemos uma temporada de três semanas e no último espetáculo, acho, Onkotô, assim que começamos caiu a luz da cidade inteira. Teve um apagão em Lyon, que é raríssimo. Esperamos e como não voltava, o público foi embora e sem ver a segunda parte. Então, o que nós fizemos? Íamos embora no dia seguinte de noite e decidimos fazer o espetáculo para quem quisesse voltar. O teatro avisou ao público, que voltou para assistir o espetáculo. Só que, em agradecimento por termos feito isso para eles, não sei como combinaram isso, todos levaram uma flor. Quando acabou, o palco ficou coberto de flores. Foi das coisas mais emocionantes que eu já vivi.
BRAVO!
Ia comentar que a resposta no exterior ao Grupo Corpo foi imediata. Sempre teve um “sotaque”?
RODRIGO PERDENEIRAS
É engraçado. Principalmente em Lyon. O Guy Darmet, que era o diretor, da Maison de La Danse, dizia que com o Grupo Corpo ganhava muito dinheiro porque não precisava fazer cartaz, não precisava colocar anúncio, era apenas colocar na programação que esgotava em dois dias tudo. Vinte espetáculos, tudo esgotava em dois dias. A gente criou um público lá fora que era muito cativo.
BRAVO!
Eu diria que no Brasil também, né?
RODRIGO PERDENEIRAS
Sim, no Brasil também. Onde a gente vai, lota, né? [risos] É impressionante, porque tem muitos anos que nós não fazemos Municipal do Rio, mas sempre eram cinco espetáculos com o Municipal esgotado. Por causa da pandemia deram uma pausa mas estamos retomando agora, inclusive a parte internacional. O pessoal está na França [conversamos no final de março]. Ficaram um mês, voltam, ficam uma semana e depois vamos para os Estados Unidos.

BRAVO!
Gosto muito como vocês sempre montam a programação resgatando repertório e apresentando algo novo.
RODRIGO PERDENEIRAS
É, a ideia é essa mesmo: sempre que estreia um, buscamos outro tem mais tempo que não se dançava no Brasil. Às vezes nem é o que tem mais tempo mesmo, mas é um que há muito tempo a gente não mostra no Brasil. Então nós vamos resgatando esse repertório e trazendo ele de volta, não deixar ficar lá atrás, se perder lá atrás.
BRAVO!
Quais suas principais influências na sua criação além da música?
RODRIGO PERDENEIRAS
Olha, mais uma vez, eu vou atrás do Balanchine, porque quando eu comecei a fazer dança, eu era alucinado com ele. Via tudo. Outro que, pra mim, é o maior coreógrafo de todos os tempos, é o Jiří Kylián. Não sei se eu posso dizer que é influência, porque os trabalhos são muito diferentes. Gosto também de Franco Dragone, que foi o cara que criou o Cirque du Soleil. Fiquei dois meses em Paris, trabalhei com ele. Fico com eles. [risos]
BRAVO!
Ao longo desses 50 anos, a dança evoluiu muito também. Houve uma adaptação? Como é que você olha pra cenário dessa evolução da dança mesmo contemporânea?
RODRIGO PERDENEIRAS
Eu acho que teve um crescimento impressionante, qualitativo também, não só quantitativo. Teve um crescimento muito grande. Começaram a surgir coreógrafos tão diferentes, foi um período muito fértil de criação. Principalmente nos anos 1970s, 1980s

BRAVO!
Existe um perfil de um bailarino do Grupo Corpo?
RODRIGO PERDENEIRAS
Não, não mesmo. São pessoas muito diferentes. A primeira coisa que a gente vê é a técnica clássica. Quando nós precisamos contratar alguém, as pessoas vêm, ficam três dias aqui, fazem aula, almoçam com a gente. As que têm uma técnica clássica, a gente pede que elas fiquem outros dois, três dias para aprender partes do repertório, para ver se saem. Porque é engraçado: tem pessoas com uma técnica fenomenal, mas quando começam a fazer as variações não sabem o que é norte e o que é sul. É impressionante como se perdem, acontece muito. E, ao mesmo tempo, tem outras que já têm um ouvido musical que tem a ver, porque tem muito trabalho que a gente faz demanda coordenação. E, obviamente, vemos tipo de personalidade também. Como é que a pessoa se apresenta no palco e tudo mais. Não tem um biotipo específico.
BRAVO!
E qual é a rotina quando não está viajando?
RODRIGO PERDENEIRAS
De segunda à sexta tem aula de nove às dez e meia, tem uma pausa e às onze começa o ensaio que vai até às três. São seis horas corridas.
BRAVO!
Estar fora do eixo Rio-São Paulo foi importante para o Grupo Corpo?
RODRIGO PERDENEIRAS
Eu acho que isso foi, de uma certa forma, até fundamental pra gente ter essa longevidade, sabe? Porque quando a gente começou, o fato de trabalhar em Belo Horizonte daquela época, em 1975, uma cidade muito mais pacata, nós acordávamos Grupo Corpo, almoçávamos Grupo Corpo, jantávamos Grupo Corpo. O foco era total, não existia uma dispersão que talvez existisse, por exemplo, em São Paulo, sabe? Isso ajudou muito a se criar uma base bem sólida da companhia ao longo do tempo.
BRAVO!
Como é que surgiu o nome?
RODRIGO PERDENEIRAS
Na verdade, foi o Paulo que deu o nome, porque já éramos um grupo de amigos, que estávamos criando o grupo – fora os irmãos – todos juntos também. O Paulo saiu com essa: “Existe Corpo de Bombeiro, Corpo Docente, que são pessoas que trabalham tendo o mesmo direcionamento. Ao mesmo tempo é Corpo porque é dança também, sabe? Mas foi pensado mais no sentido de união mesmo. Corpo, um corpo só.
BRAVO!
E como é que é trabalhar com o irmão? Como é que é essa relação?
RODRIGO PERDENEIRAS
Ah, é difícil, é difícil. Não é fácil, não. Eu evito muito discutir essas coisas. O Paulo é o Diretor Artístico, predetermina as coisas e pronto. De uma certa forma me retirei um pouco desse tipo de decisão. Evitamos ponto de atrito que é muito fácil entre irmãos. A gente pensa de maneira diferente, ficou mais fácil depois que eu recuei.
BRAVO!
E nas reuniões em casa? Nos natais e reencontros em casa? Nada de dança, nada de trabalho?
RODRIGO PERDENEIRAS
A gente não encontra, não. Não tem reunião de família. Tinha quando meus pais eram vivos, mas eles já morreram há mais de 10 anos então se perdeu esse espírito familiar…
BRAVO!
Se a gente olhar os próximos 50 anos do Grupo Corpo… Como você vê a companhia?
RODRIGO PERDENEIRAS
Você deve conhecer, claro, a Cassi Abranches.Ela dançou conosco durante 12 anos. Depois foi para São Paulo, dirigiu o Ballet da Cidade e tem uma forma de trabalhar bem parecida com a nossa. Então, a ideia foi trazer a Cassi para começar a assumir o meu papel. Com 70 anos já é hora de baixar a bola e ela está começando a assumir essa parte de criação. Ela e o meu filho, Gabriel, que é o responsável por toda a logística da companhia, de viagem e tudo, todas as montagens. Vejo o futuro na mão dos dois. Eu e a Cassi estamos trabalhando juntos, fazendo coisas à quatro mãos, um deles com Gustavo Dudamel. Está sendo muito gostoso, está sendo muito legal. É uma forma nova de trabalhar para mim e para ela. Mas tem dado certo.
BRAVO!
Como tem sido o documentário sobre os 50 anos do Grupo Corpo?
RODRIGO PERDENEIRAS
Faz um apanhado dessa trajetória e vamos fazer mais um livro também, sobre tudo que foi feito até aqui. E mais uma estreia com música da Clarice Assad, essa compositora brasileira que mora em Chicago e fez uma trilha super legal. A gente tá começando a pegar depois que a companhia voltar dos Estados Unidos. Porque eu inclusive não viajo mais com a companhia, né? Eu parei de viajar.

BRAVO!
Eu ia perguntar o porquê, se essa era uma das suas escolhas de não acompanhar. É muito puxado, né? É muito cansativo?
RODRIGO PERDENEIRAS
Eu viajei demais na minha vida inteira, né? Minha atual mulher parou de dançar há uns 10 anos e viajar sozinho vai cansando. Além de ter pânico de avião. Chega, não posso mais não. [risos]
BRAVO!
Você tem uma mensagem que você deixaria para os bailarinos que estão começando agora?
RODRIGO PERDENEIRAS
O campo de trabalho é muito pequeno, mas tem duas coisas que são fundamentais. Uma é estudar, estudar, estudar, estudar. E outra coisa, é muito fácil, principalmente nesse tipo de profissão, que a gente fica fazendo aula se olhando no espelho, é não se achar foda, é não se achar o máximo. Eu acho que é importante uma certa insatisfação consigo mesmo. Isso eu acho de força correr atrás. Eu acho isso bem importante.
BRAVO!
É verdade, essa busca da perfeição é exatamente isso, né? A gente não pode… Porque o espelho.
RODRIGO PERDENEIRAS
É um vício, né?
BRAVO!
Tem algum compositor que você ainda sonha trabalhar que você ainda tem esse desejo de trabalhar, que você ainda não tenha trabalhado?
RODRIGO PERDENEIRAS
Compositor? David Byrne, do Talking Heads. Eu tinha muita vontade de fazer um trabalho com ele.
BRAVO!
E ele sempre esteve envolvido com a cultura brasileira!
RODRIGO PERDENEIRAS
Pois é, exatamente. Ele é muito envolvido e eu gosto muito do trabalho dele. As coisas que ele faz, os shows dele, são todos performáticos, umas coisas assim. Eu tinha vontade de trabalhar com ele.
BRAVO!
E você já o conheceu pessoalmente?
RODRIGO PERDENEIRAS
Não, não, não, não.
BRAVO!
Jogar para o astral para juntar vocês. Seria algo incrível.
RODRIGO PERDENEIRAS
É, eu tenho vontade de trabalhar com ele!
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