No ano do aniversário de 420 anos da obra original de Cervantes, vale relembrar a adaptação mais popular do clássico, que, em 2025, completa 60 anos. O musical O Homem de La Mancha.
Escrito por Dale Wasserman, com música de Mitch Leigh e letras de Joe Darion, a produção estreou ocorreu em 1965 no Goodspeed Opera House, em Connecticut, com Richard Kiley no papel de Don Quixote. A produção foi um sucesso imediato, levando à estreia na Broadway em 1968, onde permaneceu por 2.328 apresentações, tornando-se um dos musicais mais duradouros da história da Broadway.
Quando surgiu na década de 1960 ,como uma reinvenção teatral do clássico, o musical nasceu de uma ideia ousada que era a de transformar não apenas o romance, mas também a figura do próprio Cervantes em personagem dramático. O autor Dale Wasserman escreveu inicialmente uma peça para televisão, intitulada I, Don Quixote, exibida em 1959, que misturava a biografia do escritor com trechos do livro. O sucesso da produção levou Wasserman a adaptá-la para os palcos como um musical, com músicas compostas por Mitch Leigh e letras de Joe Darion. Graças à força da canção The Impossible Dream, que ganhou vida própria fora dos palcos e virou um hino à perseverança e ao idealismo, O Homem de La Mancha virou um grande sucesso.
O musical tem uma estrutura metateatral: Cervantes está preso durante a Inquisição e, para defender-se diante dos outros prisioneiros, encena a história de Dom Quixote usando os objetos e personagens à sua volta. A peça, portanto, se passa tanto no mundo real quanto na imaginação de Cervantes, que assume o papel do cavaleiro andante em busca de justiça e beleza em um mundo cruel. Essa camada dupla de realidade e ficção deu ao musical uma profundidade emocional que conquistou o público e lhe garantiu vários prêmios.

Em 1972, O Homem de La Mancha chegou aos cinemas, numa produção dirigida por Arthur Hiller e estrelada por Peter O’Toole como Cervantes/Quixote, Sophia Loren como Aldonza/Dulcineia e James Coco como Sancho Pança. A produção, no entanto, enfrentou diversos desafios e não conseguiu repetir o sucesso da peça. Desde o início, a escolha do elenco gerou controvérsias. Peter O’Toole era reconhecido como um ator de prestígio, mas não tinha voz para cantar, e teve suas músicas dubladas por Simon Gilbert, o que comprometeu a autenticidade de sua performance. Por outro lado, Sophia Loren, que insistiu em cantar suas próprias músicas, foi criticada por não ter alcance vocal suficiente para o papel, ainda que sua presença em cena fosse intensa.
A direção de Arthur Hiller tentou dar ao filme uma atmosfera realista, filmando em locações na Espanha e na Itália. Porém, essa opção acabou retirando a teatralidade onírica que era tão essencial no palco. Muitos críticos apontaram que, ao se afastar da estética teatral, o filme perdeu parte do seu encanto, tornando-se sombrio e pesado. Além disso, o roteiro foi mutilado em diversas partes: algumas cenas e músicas foram cortadas na edição final, o que deixou a narrativa menos fluida e prejudicou a construção dos personagens.
A recepção do filme foi morna. Embora tenha recebido uma indicação ao Globo de Ouro de Melhor Filme (Comédia ou Musical), e Sophia Loren tenha sido indicada como Melhor Atriz, a adaptação foi considerada um esforço frustrado de transpor para o cinema a mágica que acontecia nos palcos. Ainda assim, a obra manteve seu valor simbólico, especialmente por conta da mensagem central de Dom Quixote — a de lutar por um sonho impossível mesmo diante do ridículo, do fracasso e da rejeição. Essa ideia ressoou fortemente fora das telas, e “The Impossible Dream” seguiu sendo reinterpretada em contextos políticos e sociais diversos, sendo cantada por figuras como Martin Luther King Jr. e usada em campanhas presidenciais.

Mesmo não sendo um sucesso de crítica ou bilheteria, o filme continua sendo um documento interessante de uma época em que Hollywood tentava adaptar grandes musicais da Broadway para o cinema, nem sempre com os mesmos resultados. Entre erros e acertos, a produção de 1972 permanece como um retrato da dificuldade de transformar teatro em cinema sem perder a alma da obra original — e como uma lembrança duradoura de que, às vezes, o valor está menos no resultado e mais na persistência em sonhar.
No Brasil, o musical estreou em 15 de agosto de 1972 no Teatro Municipal de Santo André, com tradução de Paulo Pontes e Flávio Rangel, e direção de Flávio Rangel. A versão brasileira contou com Paulo Autran como Don Quixote, Bibi Ferreira como Dulcinéia e Dante Rui como Sancho Pança. Em 1973, o espetáculo foi encenado no Rio de Janeiro, com Grande Otelo substituindo Dante Rui no papel de Sancho Pança.
No musical, um dos momentos mais emblemáticos é o monólogo conhecido como “A Vida como Ela É”. Nesse discurso, o personagem Dom Quixote, ou melhor, Miguel de Cervantes encarnando seu cavaleiro idealista, expressa uma recusa contundente da realidade tal como ela se apresenta: cruel, absurda e sem sentido. Ao invés disso, ele escolhe viver segundo um ideal, mesmo que este pareça insano aos olhos do mundo. Sob a ótica da psicanálise, esse momento teatral não é apenas uma manifestação de loucura, mas sim um mergulho nos mecanismos profundos da psique humana: a negação da realidade, a construção de um ideal do eu, e a sublimação do sofrimento em nome de um propósito superior. Nesta análise, veremos como o monólogo representa não apenas um delírio, mas uma estratégia psíquica de sobrevivência frente ao absurdo da existência.
A recusa do real: loucura ou lucidez?
Logo no início do monólogo, Dom Quixote declara: “Vivi quase cinquenta anos e vi a vida como ela é. Dor, miséria, fome… crueldade inacreditável”, uma constatação crua da realidade funciona como ponto de partida para uma negação radical. A psicanálise, especialmente em Freud, aponta que a negação é um mecanismo de defesa que permite ao sujeito afastar conteúdos dolorosos ou inaceitáveis do campo da consciência. Dom Quixote reconhece a brutalidade do mundo, mas decide não aceitá-la como o único horizonte possível. Ele vê que a realidade é muitas vezes insana, e por isso propõe outra forma de loucura — a loucura que escolhe sonhar.
Como ele mesmo diz: “Muita sanidade pode ser loucura — e a mais louca de todas: ver a vida como ela é, e não como deveria ser!” Essa inversão coloca em xeque o que consideramos “lúcido”. Para a psicanálise lacaniana, isso se aproxima da foraclusão: a rejeição de elementos fundamentais do simbólico (a estrutura da realidade social), o que dá lugar à criação de um universo próprio. Para Quixote, não é ele quem delira, mas sim o mundo que perdeu o juízo por aceitar a dor e a crueldade como naturais.

O Ideal do Eu: a busca da estrela inatingível
O que guia Dom Quixote, mais do que qualquer lógica prática, é um ideal de nobreza, justiça e pureza. Na fala: “Abandonar sonhos — isso pode ser loucura” há um reconhecimento de que abrir mão do sonho é uma forma de morte interior. Segundo Freud, o Ideal do Eu é a instância que se forma a partir das exigências do superego, representando aquilo que o sujeito gostaria de ser. Quixote constrói sua identidade em torno desse ideal elevado — mesmo que isso o afaste da realidade objetiva.
Na linguagem lacaniana, poderíamos dizer que ele está capturado pelo desejo do Outro, ou seja, por um desejo que nunca se realiza completamente, mas que move o sujeito em direção ao impossível. O “sonho impossível” se torna, portanto, o eixo estruturante de sua existência.
Sublimação: transformar dor em sentido
A angústia de Quixote diante da dor humana também revela um desejo de transformar sofrimento em algo significativo. Ele diz: “Eu os segurei em meus braços no momento final… apenas seus olhos se encheram de confusão, choramingando a pergunta: ‘Por quê?’”
Essa imagem remete diretamente à experiência do vazio existencial, daquilo que Lacan chamaria de “real” — o que não pode ser simbolizado. Em vez de ser consumido por esse abismo, Quixote o ressignifica através da ação: lutar, amar, proteger, sonhar.
É aqui que entra o conceito freudiano de sublimação — o redirecionamento de impulsos (como a agressividade ou o desejo sexual) para fins mais elevados, como a arte, a ética ou o heroísmo. Ao lutar por Dulcineia, ao enfrentar “gigantes”, ao manter sua honra, Quixote transforma o caos interior e exterior em uma narrativa épica.
Ao final do monólogo, quando Quixote afirma que “ver a vida como ela é, e não como ela deveria ser” é a maior loucura, ele não apenas declara sua visão de mundo — ele oferece um espelho para o espectador. Pela lente da psicanálise, vemos que sua recusa da realidade é mais do que delírio: é um gesto de sobrevivência simbólica. Dom Quixote não é apenas um louco; ele é o símbolo de um desejo profundamente humano — o de dar sentido à existência, mesmo que esse sentido só exista na fantasia. E talvez, como ele sugere, é essa “loucura necessária” que nos mantém verdadeiramente vivos.
Diante das datas importantes – e os tempos que vivemos – se torna irresistível querer rever o filme, não acham?
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