O Lago dos Cisnes do Kirov de 1968: perfeição

Ninguém esquece sem primeiro O Lago dos Cisnes completo. O meu não foi ao vivo, mas uma cópia em VHS de um filme de 1968, do Kirov Ballet, gravado pelo estúdio soviético Lenfilm, que eu nem sabia na época, mas é considerado uma das mais refinadas gravações cinematográficas de um balé clássico já realizada. Hoje tenho carinhosamente minha cópia em bluray.

Dirigido por Apollinariy Dudko, a versão é assinada por Konstantin Sergeyev, diretor do Kirov na época e preserva a tradição coreográfica da escola russa e leva para a tela a estética e a emoção da obra de Tchaikovsky com uma fidelidade impressionante.

A grande estrela do filme é Yelena Yevteyeva, que interpreta Odette/Odile, que trouxe delicadeza dramática ao papel, com ênfase mais na expressividade plástica do que em exibições técnicas. Ela representa uma linhagem de bailarina mais lírica e emocional, sendo um destaque no cenário soviético da época.

O filme teve enorme impacto tanto artístico quanto político. Em plena Guerra Fria, ele serviu como peça de diplomacia cultural da União Soviética, mostrando ao mundo a sofisticação da arte soviética. Sua fotografia, cenografia e fidelidade à música e à coreografia fizeram com que se tornasse um marco no registro cinematográfico do balé. Sem surpresa, seu valor artístico foi reconhecido décadas depois no cinema quando inspirou o filme Black Swan (2010), cuja cena de abertura é fortemente inspirada em sua atmosfera e imagens dessa versão.

Um balé de perfeição, propaganda e permanência

Em 1968, o mundo estava no auge da Guerra Fria, e a cúpula da União Soviética decidiu que a virtuosidade do balé clássico russo era uma de suas armas mais eficientes de propaganda. Assim, há muitos filmes preservados que registraram grandes lendas da dança e gravados pelo estúdio estatal Lenfilm. Mais do que um registro artístico, a proposta era ter símbolos da excelência cultural soviética, uma vitrine da tradição russa do balé — e também uma sofisticada peça de propaganda. E nada mais clássico do que O Lago dos Cisnes.

A grande curiosidade está no drama dos bastidores. Dirigido por Konstantin Sergeyev, com coreografia baseada nas versões de Petipa e Ivanov, e conduzido musicalmente por Viktor Fedotov, o filme estrelou uma jovem e pouco convencional bailarina chamada Yelena Yevteyeva como Odette/Odile, que foi escolhida de última hora para substituir a já consagrada Natalia Makarova.

Makarova já era uma grande estrela, mas sua substituição revela como era complexo sobreviver sobre o regime soviético e acabou por contribuir para a decisão dela ‘desertar’ para o ocidente, apenas dois anos depois. Naquele período, o destaque internacional de Makarova incomodava a cúpula do Kirov, especialmente depois do grande sucesso que ela fez na turnê de Londres. Há apenas três anos antes, Rudolf Nureyev deu o “salto para a liberdade”, criando grande embaraço para o Kirov, portanto a atenção que a bailarina passou a ter fora da URSS gerou uma crescente tensão com as autoridades soviéticas. Ela já era uma das principais estrelas da companhia e estava cada vez mais inclinada a buscar uma carreira internacional, o que não era bem visto pelo governo soviético, que controlava rigidamente a saída de seus artistas.

Assim, especificamente, em 1968, Makarova foi impedida de participar da filmagem do balé por questões de “gestão” e “interesses políticos”, sendo substituída sem cerimônia por Yelena Yevteyeva. O que poderia ter sido uma decisão técnica ou artística teve raízes em uma série de decisões políticas e de gestão no Kirov Ballet.

Depois que deixou o Kirov, Makarova fez uma bem-sucedida carreira internacional, alternando apresentações no Royal Ballet de Londres e em várias companhias ocidentais, como o American Ballet Theatre, ao lado de Mikhail Baryshnikov, que fugiu para o ocidente em 1973. (Casualmente, Baryshnikov era o parceiro de palco mais frequente de Yevteyeva). Ou seja, essa mudança de intérpretes e a política por trás disso representam um reflexo das tensões e dos desafios que os artistas enfrentavam na URSS durante a Guerra Fria.

Uma lenda entre os bailarinos em uma obra perfeita

Quem está fora do universo da dança talvez não seja familiarizado com Yelena Yevteyeva, que surpreendeu o público e a crítica com uma interpretação intensa, plástica e profundamente sensível em O Lago dos Cisnes, dançando com John Markovsky como Príncipe Siegfried e Makhmud Esambayev como Von Rothbart, em um elenco que equilibrou tradição e ousadia dramática.

Yelena Yevteyeva nasceu em Leningrado em 1947 e se formou na rigorosa Vaganova Academy em 1966, sob a tutela da lendária professora Lydia Tiuntina. Sua entrada para o Kirov foi imediata, e rapidamente assumiu papéis de destaque. Apesar de não seguir o caminho típico das estrelas clássicas — sua carreira não foi pautada pela busca de proezas técnicas ou por uma adesão rígida ao repertório tradicional — ela marcou profundamente com interpretações densas e teatrais. Em O Lago dos Cisnes, sua estreia cinematográfica, revela uma presença etérea e introspectiva, com controle absoluto do movimento e uma entrega emocional incomum. Sua Odette não era apenas a cisne trágica, mas uma alma à deriva; sua Odile, por outro lado, sedutora sem caricatura, construída com gestos que sugerem mais do que mostram.

A filmagem de O Lago dos Cisnes de 1968 é celebrada por vários motivos. Um deles é sua fotografia meticulosamente planejada: com planos que privilegiam a fluidez dos corpos, movimentos de câmera suaves, iluminação dramática e uma paleta visual quase onírica, a produção buscou não apenas capturar o balé como espetáculo, mas também traduzi-lo para a linguagem do cinema. Não é exagero dizer que esta versão elevou o padrão de filmagens de balé no século 20 — algo reconhecido por críticos e historiadores da dança até hoje. A estética da abertura, como já mencionado, serviu de inspiração direta para o filme Black Swan (2010), de Darren Aronofsky, cuja primeira sequência é uma releitura do prólogo em que Odette é transformada em cisne por Rothbart.

Mas a importância deste filme não se limita ao campo artístico. A propaganda cultural soviética dos anos 60s e 70s plantou uma ideia de refinamento, beleza e superioridade numa arte tão bonita como o ballet. Nos palcos, as grandes estrelas da época incluíam nomes como Natalia Makarova, Alla Osipenko, Rudolf Nureyev, Mikhail Baryshnikov (ambos já no Ocidente), Vladimir Vasiliev, Maya Plisetskaya, e Ekaterina Maximova, entre outros, enquanto no exterior brilhavam Margot Fonteyn, Carla Fracci, e Erik Bruhn. Entre esses nomes, Yevteyeva parecia uma exceção — menos visível fora da URSS, mais sutil que a teatralidade de Plisetskaya, mais introspectiva que Makarova — mas sua interpretação no filme de 1968 permanece como uma das mais delicadas e assombrosas já registradas.

Ao longo de sua carreira, Yevteyeva se destacou em papéis dramáticos como Maria em A Fonte de Bakhchisarai, Shirin em A Lenda do Amor e Katerina em A Flor de Pedra, ambas coreografadas por Yuri Grigorovich. Sua Giselle, estudada por dois anos sob orientação de Natalia Dudinskaya, é ainda hoje citada como uma das mais etéreas e devastadoras já vistas no palco do Kirov. Em La Sylphide, Chopiniana, Napoli e Le Corsaire, sua técnica plástica — aquela capacidade de transformar o corpo em escultura viva — impressionava tanto quanto sua inteligência interpretativa. Após se aposentar dos palcos em 1993, tornou-se ensaiadora e professora na Vaganova Academy, onde formou talentos como Svetlana Zakharova, Daria Pavlenko, Veronika Part e Yulia Makhalina.

Assistir hoje à filmagem de O Lago dos Cisnes (1968) é testemunhar não apenas uma era de ouro do balé russo, mas também um capítulo significativo da história da arte sob regime autoritário. É um documento que transcende seu tempo: ao mesmo tempo que cristaliza a visão soviética de perfeição estética, revela a tensão entre controle e sensibilidade — um paradoxo que, de certa forma, define a própria trajetória de Yevteyeva. Não é à toa que esse filme é considerado por muitos especialistas como a mais bela gravação já feita de O Lago dos Cisnes.


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