120 anos de A Morte do Cisne: O solo que transformou a morte em arte

Dependendo da versão, ou foi Mikhail Fokine que leu o poema de Alfred Tennyson ou foi Anna Pavlova, o fato é que ambos os russos que já tinham trabalhado juntos na Rússia Imperial, depois nos Ballets Russes, entenderam que ali estava o potencial de uma grande peça a ser dançada. Uma que viria a ser a assinatura da lendária bailarina, e que em 2025 completa 120 anos. Um grande momento para homenageá-la.

Criado em 1905, o solo A Morte do Cisne se tornaria um dos maiores ícones do ballet mundial porque a coreografia não exigia grandes acrobacias ou saltos deslumbrantes, mas uma entrega emocional única. Em apenas dois minutos, a bailarina deveria encarnar a morte de um cisne, representando, através de um corpo fragilizado, a luta contra o fim, a tristeza e a beleza do último suspiro. O que começou como um solo efêmero de despedida tornou-se, com o passar do tempo, um dos maiores símbolos da arte da dança clássica.

A Morte do Cisne: Mito, Poema e A Dança

A ligação do solo com o mito do “canto do cisne” remonta à ideia de que, no momento de sua morte, o cisne emite um último e encantador canto. Embora cientificamente desmentida, essa crença se tornou uma metáfora poderosa, não só na literatura, mas também na arte.

E justamente, a primeira manifestação dessa imagem na literatura foi o poema The Dying Swan, de Alfred Tennyson, escrito em 1830, quando o poeta ainda tinha apenas 20 anos. Após a morte de seu pai, Tennyson mergulhou em um período de intensa reflexão sobre a morte e o sofrimento. No poema, o cisne, último de sua espécie, canta com uma beleza transcendente antes de se perder nas águas da morte. Esse símbolo de despedida e beleza se tornou um dos pilares da iconografia ocidental.

The wild swan’s death-hymn took the soul
Of that waste place with joy
Hidden in sorrow; at first to the ear
The warble was low, and full and clear;

Tradução:
O hino de morte do cisne selvagem
Tomou aquela terra em desolagem
Com uma alegria escondida no pesar.
Seu canto era baixo, puro a vibrar.

Vamos considerar a versão de que foi Fokine que teve a ideia da coreografia, especialmente para Pavlova. Ele pegou essa alegoria da poesia de Tenynson e a transfigurou em movimento. A obra foi construída para traduzir não apenas a morte do cisne, mas também a sua resignação, a sua fragilidade diante do inevitável. Fokine encontrou na música O Cisne, de Camille Saint-Saëns, e que já fazia parte da suíte O Carnaval dos Animais, a melodia perfeita que acrescentou ainda mais ao simbolismo ao balé. Em apenas dois minutos, Pavlova deveria se transformar em um ser que, apesar da fragilidade, emanava uma força silenciosa e imensurável.

Pavlova: A Imortalização do Solo

Anna Pavlova foi mais do que uma intérprete de A Morte do Cisne — ela se tornou a própria representação do solo. Com sua figura esguia, braços longos e movimentos delicados, ela trouxe a fragilidade do cisne à vida de forma arrebatadora. Para Pavlova, o solo tornou-se uma extensão do seu próprio corpo, um rito de despedida não só do personagem, mas de sua carreira. A bailarina dançou essa peça mais de 4.000 vezes, e sua interpretação do cisne moribundo se tornou uma imagem indissociável da sua própria trajetória artística.

A coreografia de Fokine, com suas gesticulações lentas e seus braços que se desfazem como se estivessem se dissolvendo no ar, exigia uma técnica refinada, mas também uma imersão profunda na emoção. Para Pavlova, o cisne não era apenas um animal, mas uma figura profundamente humana, que enfrentava a morte com uma beleza única.

A bailarina, já marcada pelo seu carisma e sua técnica impecável, fez de A Morte do Cisne um de seus maiores legados, e o solo permaneceu intimamente ligado ao seu nome até o fim de sua vida, quando, mesmo gravemente doente, pediu para dançá-lo mais uma vez. Tanto que suas últimas palavras em público foram “preparem a roupa do cisne”. Mas não chegou aos palcos. Pavlova faleceu pouco depois, mas seu último ato dançante deixou uma marca indelével na história da dança.

O Solo e a Maturidade

Embora A Morte do Cisne tenha se tornado um solo mais associado à fase final da carreira de uma bailarina, isso não significa que só intérpretes experientes possam dançá-lo. A peça exige uma compreensão profunda da fragilidade e da transitoriedade, temas que podem ser explorados de diferentes maneiras. No entanto, é verdade que o solo encontra uma ressonância mais profunda quando dançado por artistas com uma bagagem emocional mais rica, como aquelas que já passaram por vários papéis e experiências no palco.

O que realmente distingue A Morte do Cisne de outros solos é a capacidade de a bailarina se entregar totalmente à expressão emocional. O foco não está no virtuosismo físico, mas na capacidade de transmitir a fragilidade e a melancolia do personagem. Por isso, muitas das grandes bailarinas que o interpretaram estavam em estágios avançados de suas carreiras, quando a técnica é aliada à profundidade emocional que o solo exige.

Grandes Intérpretes e Legado

Além de Pavlova, várias outras bailarinas imortalizaram A Morte do Cisne ao longo do século 20 e 21, e sua interpretação foi enriquecida e transformada por diferentes estilos e períodos. Maya Plisetskaya, uma das maiores estrelas do balé soviético, trouxe uma interpretação poderosa, marcada pela intensidade emocional e pela técnica refinada, enfatizando o sofrimento interior do cisne. Sua versão do solo foi uma das mais aclamadas, com a bailarina misturando fragilidade com uma imensa força, uma expressão corporal que se impunha e encantava. Posso esnobar? Eu tive o privilégio de dançar o solo. Era incrível.

Outra grande intérprete foi Uliana Lopatkina, do Teatro Mariinsky, cuja suavidade e elegância trouxeram uma nova dimensão ao solo. Sua interpretação, com movimentos fluídos e cheios de graça, manteve viva a ideia de que o cisne, apesar de sua morte iminente, transmite uma beleza única e etérea. Svetlana Zakharova, uma das estrelas do Bolshoi, também fez história com sua versão de A Morte do Cisne, imprimindo uma técnica impecável e um toque de dramaticidade, o que fez de sua leitura um espetáculo de pureza e tristeza.

A bailarina francesa Sylvie Guillem também dançou A Morte do Cisne, trazendo uma abordagem que mesclava sua técnica apurada com uma leitura mais contemporânea da peça, infundindo-a com uma dor mais introspectiva e existencial. Guillem, como Pavlova, também soube integrar a fragilidade e a força do cisne de uma maneira completamente única. Não há como esquecer de Natalia Makarova e Galina Ulanova também.

Essas intérpretes, e muitas outras ao longo das décadas, ajudaram a manter o solo vivo e relevante, cada uma oferecendo uma visão própria do que significa dançar a morte de um cisne. Ao longo dos anos, o solo não apenas sobreviveu ao tempo, mas também se adaptou a novas leituras e a diferentes interpretações culturais e artísticas, seja no cenário clássico ou em releituras contemporâneas.

O Mito do Canto do Cisne e sua Relevância Cultural

O mito do canto do cisne é um conceito profundo que atravessa séculos de literatura, arte e filosofia. Ele representa a tragédia da beleza e da inevitabilidade da morte, transformada em algo sublime. Essa imagem do cisne, que ao morrer exibe a sua maior beleza, transcende a ideia de dor, simbolizando não apenas o fim, mas também uma celebração da vida através da morte.

Em sua longa trajetória, o mito apareceu em diversas formas de arte — na literatura, na pintura e no teatro. O poema de Tennyson foi apenas um dos primeiros marcos dessa imaginação artística, mas o conceito de um último suspiro glorioso se repetiu em várias culturas e representações. A dança, com sua capacidade de capturar o efêmero, tornou-se a linguagem ideal para traduzir essa imagem. Em A Morte do Cisne, Fokine e Pavlova cristalizaram a ideia de que, no final, podemos encontrar a beleza na despedida, a grandeza no momento de fragilidade.

Agora, 120 anos depois de sua criação, A Morte do Cisne permanece um dos solos mais emblemáticos da dança clássica. Mais do que uma simples coreografia, é uma obra de arte que fala diretamente ao espírito humano, sobre a fragilidade do corpo, a beleza da despedida e a transcendência da morte. O solo, através de diferentes intérpretes e interpretações, continua a inspirar gerações, reafirmando o poder da dança como forma de expressão universal, que vai além do tempo e do espaço.

Ao revisitar esse marco da história do ballet, celebramos não apenas os 120 anos do solo, mas também a capacidade da arte de captar o fugaz e transformá-lo em eternidade. O cisne, que uma vez cantou e morreu no palco, segue vivo na memória coletiva da dança, sempre pronto para nos lembrar que, mesmo no fim, há beleza a ser encontrada.


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