Entendendo a Complexidade de Deborah em Hacks

Apenas quando a gente pensa que pode abaixar a guarda com Deborah Vance (Jean Smart) ela nos coloca em uma encruzilhada que nos faz, realmente, detestá-la. Na reta final da terceira temporada de Hacks, a série entrega o que faz de melhor: escavar, com humor cortante e franqueza emocional, as rachaduras entre ambição, afeto e poder. Depois de sugerir reaproximações, conquistas e um delicado reposicionamento profissional e pessoal da comediante, os capítulos finais reacendem o conflito mais central da história — e talvez o mais doloroso: o quanto essa mulher, que se reinventa no palco, ainda tropeça nas piores versões de si mesma fora dele.

O jogo de ódio e amor entre Debora e Ava (Hannah Einbinder) nos coloca alternando simpatias, mas Ava quase sempre tem razão. Deborah usa e abusa das pessoas, mesmos as que ama e quer por perto e Ava custou a ter o reconhecimento que merecia. Quando Deborah finalmente admitiu que a jovem “é sua voz”, foi um ponto alto e emocionante.

Reencontramos as duas em uma das melhores fases pessoais e profissionais, numa vibração perfeita. A reconciliação parece ser sólida. É um momento raro de vulnerabilidade mútua. Mas, como sempre em Hacks, a paz é provisória e Deborah volta a sabotar o que parecia resolvido.

Vamos combinar que não nasceu de algo planejado, mas talvez por isso mesmo, pior. Quando depois de muita pressão de Winnie Landell (Helen Hunt) que o programa chegasse a número 1, Deborah e Ava conseguem chegar lá – numa ousada estratégia de usar redes sociais e evitar lutar pelas mesmas notícias e convidados que a competição – mas aí nasce o impasse. Winnie segue cobrando, considerando que é hora de continuar brigando pela posição e mais espaço, mas Deborah quer curtir a vitória e acalmar. Ambas certas e ambas erradas?

Um telefone de Bob Lipka (Tony Goldwyn) muda tudo. O ex-amante de Deborah, e dono da emissora, está feliz com o sucesso dela, mas a comediante se queixa de Winnie, pedindo ajuda para “afastá-la” e deixá-la em Paz. O que ela diz é uma coisa, o que Bob escuta é outra. “Considere feito”, ele assegura. No dia seguinte, para surpresa de Deborah vem a notícia de que Winnie foi demitida. O choque dos outros não tem o mesmo peso: eles parecem genuinamente perdidos, mas Ava logo percebe que Deborah está surpresa, mas que sabe algo mais. Afinal, Ava sabe exatemente quem é Deborah e do que ela é capaz. Mas, se (ou melhor, quando), confirmar o pior, será que a amizade das duas realmente sobrevive?

Não é como se Ava – que conseguiu sua posição chantageando Deborah pela ligação dela com Bob – possa posar de íntegra. Mas Ava sempre se julga certa, né? Ela e Deborah são mesmo o espelho da mesma pessoa. Aqui, dificilmente Deborah vai assumir responsabilidade ou se desculpar. Ela até pode desconfiar, mas parece nem perceber, de imediato, o impacto que tem sobre os outros. É o tipo de atitude que rompe laços, mina confiança e confirma o pior que Ava teme: que, em última instância, Deborah sempre escolherá a si mesma.

Esse tipo de virada é que faz de Hacks ser a série de comédia mais premiada do momento. Quando achamos que esgotamos a narrativa, o roteiro investe com mais profundidade nas contradições de Deborah sem poupá-la em nada. Ela é genial, resiliente, engraçada, pioneira. Mas também é narcisista, inconsequente, manipuladora. Seu carisma ilumina e destrói. E, diferente de temporadas anteriores, em que os erros vinham como resultado de insegurança ou medo, aqui o gesto de pedir interferência na demissão da executiva vem do conforto, do retorno ao topo, do uso inconsciente de privilégios. Isso torna tudo ainda mais grave — e mais difícil de perdoar.

Deborah não pediu diretamente a demissão, mas sabia o que estava fazendo. Quis aliviar uma pressão e, no processo, destruiu uma carreira. Foi um erro — moral e estratégico. Em vez de enfrentar a chefe ou aceitar os desafios do novo ambiente, ela recorreu a atalhos. O problema é que esse atalho cobra um preço: o da confiança de Ava, a única pessoa que a conhece por inteiro e ainda assim insiste em vê-la com esperança.

O que vem agora?

Ava está ferida, mas não surpreendida. O olhar final dela para Deborah mistura decepção, cansaço e, talvez, amor frustrado. Resta saber o que será da dupla. A história de Hacks nunca foi só sobre comédia, e sim sobre o que custa a mulheres brilhantes permanecerem brilhantes — especialmente quando o mundo as quer apagadas ou domesticadas. Mas também é sobre os danos que essas mulheres, quando não enfrentam seus próprios fantasmas, causam nos outros.

Com essa virada, pode ser tanto a despedida de Helen Hunt como um espaço mais significativo. Hunt, vencedora de quatro Emmys por Mad About You, construiu em Winnie uma mulher pragmática e ambiciosa, cuja determinação ecoa a de muitas profissionais que abriram caminho na indústria sob intensa pressão. “Foi divertido levar isso para o lado pessoal”, disse à Vanity Fair. “Minha personagem vê como missão colocar essa mulher [Deborah] naquela posição.” Mas o sucesso meteórico de Deborah acaba selando o destino de Winnie.

Para Hunt, a queda de Winnie expõe a dinâmica brutal entre arte e poder em Hollywood — e também o abismo de percepção entre intenção e consequência. “Ela só diz ‘digam para ela pegar leve’”, relembra a atriz. “E então o personagem do Tony Goldwyn simplesmente corta minha cabeça fora. E a Jean [Smart] reage com um choque genuíno.” Segundo Hunt, isso reflete com precisão o momento de hubris que acompanha o sucesso: quando não se percebe a força que se tem nem o que se está perdendo. Em entrevista, a atriz também falou sobre o legado das executivas duras que conheceu ao longo da carreira: mulheres que não tinham margem de erro, que diziam a verdade com franqueza e esperavam o mesmo das outras. “Me lembrou, retroativamente, de ter compaixão por essas mulheres fortes que chegam com ordens claras”, contou. Para Hunt, interpretar Winnie foi uma homenagem silenciosa a essas figuras que equilibram, diariamente, a corda bamba entre o que é possível criar e o que é possível vender.

E é assim que a grande pergunta que os episódios finais deixam no ar é: até onde vai a lealdade de Ava? Até quando se pode amar alguém que insiste em ser o pior de si mesma quase sempre? Hacks não responde, apenas expõe. E talvez esse seja o maior mérito da série: não salvar Deborah Vance da própria natureza, mas também não nos deixar odiá-la por completo. Ela é o reflexo mais cruel e verdadeiro do que significa sobreviver — e triunfar — num sistema que nunca ofereceu às mulheres o luxo de errar. O problema é que ela parece cada vez mais viciada nesse mesmo sistema.

E, como sempre, quem paga é quem está mais perto.


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