Wallis Simpson: a mulher que a realeza nunca perdoou

Príncipe Harry costuma dizer que seu maior medo é que “a história se repita”, referindo-se à trágica trajetória de sua mãe, Princesa Diana. Mas, ironicamente, ele revive um trauma ainda mais antigo da monarquia britânica: o amor de um príncipe por uma mulher americana, divorciada, que desafia as convenções reais. Se Wallis Simpson havia começado a ser esquecida, a figura de Meghan Markle a devolveu, ainda que indiretamente, um novo protagonismo. A história se inverte: enquanto Edward VIII abdicou do trono por amor a Wallis, alterando para sempre a ordem de sucessão da Coroa, Harry jamais teve chance real de ser rei — a não ser que uma catástrofe se abata sobre a linha de sucessão — e mesmo assim provocou comoção, ruptura institucional e guerra midiática semelhantes. O eco dessa história atravessa décadas e revela muito sobre o que a monarquia aceita, rejeita ou teme.

Wallis Simpson nasceu Bessie Wallis Warfield, em 1896, em uma família tradicional da Pensilvânia que havia perdido sua fortuna. Órfã de pai ainda bebê, cresceu entre Baltimore e ambientes sociais abastados, sem nunca pertencer integralmente a eles. Ela se casou jovem com um piloto alcoólatra (por isso sofreu abusos domésticos) e, após o divórcio, se casou novamente com o executivo britânico Ernest Simpson. Foi durante esse segundo casamento, em 1931, que conheceu o então Príncipe de Gales, Edward. O romance se aprofundou ao longo dos anos, com ela ainda formalmente casada. Quando Edward subiu ao trono, em janeiro de 1936, a crise foi inevitável.

O novo rei queria se casar com Wallis, mas a Igreja Anglicana, da qual ele era chefe supremo, não aceitava o casamento com uma divorciada com dois ex-maridos vivos. Os conselheiros reais e o primeiro-ministro se opuseram. A solução foi a abdicação. Em dezembro do mesmo ano, Edward anunciou publicamente sua renúncia ao trono, alegando não poder cumprir suas funções “sem a mulher que amo”. Seu irmão mais novo, Albert, assumiu como George VI — e, com isso, a jovem princesa Elizabeth tornou-se herdeira. O gesto de amor de Edward redefiniu os rumos da história britânica, lançando Wallis ao centro de um escândalo sem precedentes. E, de alguma forma, interferiu no próprio destino de Harry (que pela ordem “natural” da sucessão jamais estaria tão perto do trono caso seu bisavô não tivesse sido rei).

Ela nunca foi perdoada. A família real a excluiu cerimonialmente, recusando-lhe o título de “Sua Alteza Real”. A imprensa britânica — que havia silenciado o caso durante o namoro — passou a retratá-la como manipuladora, fria, uma americana sem classe nem reverência, causadora da maior crise constitucional do século 20. Para os súditos, ela era a mulher que afastara o rei por vaidade. Já para os aliados do casal, era vítima de misoginia, xenofobia e ressentimento institucional.

A visita do casal a Hitler em 1937 acentuou as suspeitas sobre suas inclinações políticas. Documentos revelados anos depois mostraram que os nazistas viam Edward como um possível aliado útil, caso a Grã-Bretanha fosse conquistada. Embora não haja provas de colaboração, os indícios bastaram para que o casal fosse “exilado” nas Bahamas durante a Segunda Guerra Mundial, com Edward ocupando o pouco prestigiado cargo de governador-geral. O período, embora mais diplomático do que conspiratório, foi marcado por tédio e isolamento. Wallis odiava o clima, a posição e o afastamento de tudo o que conhecia. Suas cartas refletem o desprezo pela colônia e pelos habitantes locais, alimentando a má fama do casal.

Após a guerra, estabeleceram-se em Paris, vivendo entre festas, coleções de arte, retratos de Cecil Beaton e solidão. Tornaram-se figuras sociais excêntricas, disputados em jantares e capas de revistas, mas sempre como o casal que viveu um amor que custou um império. Edward nunca superou a perda do trono. Wallis, por sua vez, viveu entre o privilégio e o ressentimento, adaptando-se ao papel de anfitriã social — uma espécie de celebridade periférica, mas sem pátria nem poder real. O casamento resistiu, embora marcado por silêncios e saudades mal disfarçadas.

Quando Edward morreu, em 1972, Wallis mergulhou numa longa decadência. Os últimos anos de sua vida foram tristes e reclusos. Sofrendo de demência, praticamente muda, Wallis passou a viver sob os cuidados da advogada francesa Suzanne Blum, que assumiu progressivamente o controle de seus bens e limitou o contato da duquesa com amigos e funcionários. Há relatos de negligência, manipulação e de exploração patrimonial — inclusive venda de peças de valor sem consentimento claro da duquesa. Suzanne Blum posicionou-se como guardiã do legado de Wallis, mas é vista por muitos biógrafos como uma presença sombria, que se aproveitou do declínio da antiga duquesa para obter controle absoluto sobre sua fortuna e imagem pública.

Wallis morreu em 1986, aos 89 anos, quase esquecida — a mulher que um dia havia abalado um império, reduzida a um enigma cercado por fantasmas.

A imagem pública de Wallis passou por reavaliações nas últimas décadas. A série The Crown apresentou-a como uma figura elegante, melancólica, ambígua. Já o filme W.E. (2011), dirigido por Madonna, tentou reabilitá-la por completo, mostrando-a como uma mulher forte e injustiçada, pressionada por forças que jamais controlou. Madonna, como americana, declarou ter se chocado com o ódio que os britânicos ainda nutriram por Wallis — e sentiu-se compelida a contar sua história sob lentes simpáticas. No entanto, o filme fracassou em crítica e bilheteria. Acusado de superficialidade, narrativa confusa e excesso de estilização, W.E. não conseguiu oferecer a profundidade necessária para reescrever a narrativa dominante e foi descartado como tentativa estética sem substância.

A expectativa agora recai sobre The Bitter End, novo filme centrado nos últimos anos da duquesa. Prometido como um retrato psicológico, deve explorar o isolamento, a dependência de Blum, e a deterioração física e simbólica de uma figura que o mundo preferiu demonizar a compreender. Há potencial para que o longa revele uma Wallis mais humana — presa num papel que nunca escolheu integralmente. O título, ambíguo, remete tanto ao fim literal quanto ao amargor que marcou sua trajetória. Espera-se uma produção que dialogue com o presente, especialmente após o exílio voluntário de Harry e Meghan.

Comparações com Meghan Markle ressurgem inevitavelmente. Ambas americanas, divorciadas, alvo de campanhas midiáticas e institucionalmente marginalizadas. Mas há diferenças fundamentais: Meghan, ao contrário de Wallis, entrou na família com apoio popular inicial, teve voz ativa, recursos, e um príncipe sem poder real a perder. Wallis, por sua vez, foi vítima de uma era sem redes sociais, sem imprensa livre — e de um homem que abandonou o trono, mas nunca renegou a estrutura que os rejeitou. Harry rompe com o sistema que Wallis e Edward, paradoxalmente, tentaram agradar mesmo após serem expulsos dele.

Ainda assim, há uma nuance curiosa: enquanto Meghan Markle tornou-se figura polarizadora e alvo de intenso escrutínio, Camilla Parker Bowles — durante décadas rejeitada pelo público como a “outra mulher” no casamento de Charles e Diana — conseguiu, com o tempo, reverter sua imagem e ser aceita como rainha consorte. Esse contraste lança luz sobre como a monarquia e a opinião pública escolhem suas vilãs e, mais importante, quando decidem perdoá-las. Camilla foi, por anos, tratada como ameaça à continuidade da dinastia, mas hoje é integrada e celebrada. Já Meghan, embora jamais tenha ameaçado a linha sucessória, é retratada por parte da imprensa britânica com intensidade crítica comparável à enfrentada por Wallis. O que mudou — e o que não mudou — revela as dinâmicas seletivas de inclusão, culpa e redenção que ainda sustentam o mito da família real.

No fim, talvez Wallis Simpson não tenha sido heroína nem vilã, mas um espelho incômodo para a monarquia: revelando o quanto o amor pode ser revolucionário — e o quanto a instituição resiste a mudanças que não partem de dentro. Se a história se repete, é porque os fantasmas nunca foram embora. Apenas trocaram de nome.


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