Cathy Ames: Anatomia do Mal em “Vidas Amargas”

A antecipada adaptação do clássico da literatura americana, East of Eden, de John Steinbeck (no Brasil, Vidas Amargas) já está em pós-produção e trará Florence Pugh como a odiada e odiosa Cathy Ames, numa minissérie escrita por Zoe Kazan (a neta do diretor do filme original, Elias Kazan). A estreia deve ser no início de 2026 e claramente virá com tudo para prêmios.

Embora seja uma obra que usa como base a história bíblica de Caim e Abel, é a cruel e psicopata Cathy Ames que podemos ver como personagem central do romance. Ela é uma das mais perturbadoras construções femininas da literatura americana. Figura fascinante e enigmática, Cathy escapa de rótulos fáceis como “vilã” ou “antagonista” para encarnar algo mais profundo: a possibilidade do mal absoluto dentro da condição humana.

Steinbeck a concebe como um contraponto direto à ideia de livre-arbítrio e redenção — uma personagem que parece nascer com a incapacidade de sentir empatia, remorso ou amor. A futura adaptação da Netflix promete aprofundar essa psicologia sombria que, até hoje, provoca desconforto e fascínio. Pode-se argumentar também que, em tempos de grande consumo de true crime e psicopatas, Cathy finalmente será “compreendida”.

Origens sombrias: a infância de uma sociopata

Desde a infância, Cathy exibe sinais de comportamento desviante. Em vez da ingenuidade infantil, o que vemos é frieza, manipulação e prazer sutil no sofrimento alheio. Ela aprende desde cedo a usar sua beleza como ferramenta de dominação e, ainda adolescente, arma a morte dos próprios pais ao incendiar a casa em que viviam. O crime é disfarçado de acidente — uma primeira demonstração de sua habilidade para manipular aparências e escapar de consequências. Ela não age por trauma ou autopreservação, mas por cálculo: Cathy elimina obstáculos como se riscasse palavras de uma lista.

Essa ausência de consciência moral é mais do que crueldade; é um vazio estrutural, um buraco negro emocional. Cathy não sente culpa, e suas ações não vêm de impulsividade, mas de uma lógica interna perversa em que o controle sobre os outros é a única forma de prazer. Steinbeck parece sugerir que ela nasceu assim — sem redenção possível.

No filme de Kazan, com James Dean, essa parte primordial da história foi eliminada para poder manter a duração do filme abaixo de duas horas. Também, a meta era explorar Dean como protagonista, por isso o roteiro nunca deixa claro a razão da mãe de Cathy estar longe dos filhos, sugerindo ser porque é prostituta. Uma versão simplista e injusta mesmo com uma personagem tão controversa como Cathy Ames.

A entrada na vida dos Trask: manipulação e destruição

Após anos de vagar e explorar homens em busca de vantagens, Cathy (Pugh) é brutalmente espancada por um cafetão e deixada para morrer. Numa cena quase bíblica de acolhimento, é encontrada por Adam Trask (Christopher Abbott) e seu irmão Charles (Mike Faist). Adam, encantado por sua beleza frágil e aura de vítima, a acolhe em sua casa. Apesar das reservas de Charles, que intui algo de sombrio em Cathy, Adam se apaixona por ela com devoção cega.

Cathy, por sua vez, vê em Adam uma rota de fuga, um homem fácil de manipular. Ela se casa com ele, mas nunca compartilha seus sentimentos. Quando Adam decide levá-la para a Califórnia e construir uma vida familiar idealizada, Cathy já planeja sua próxima fuga. Após dar à luz gêmeos — Cal e Aron — ela atira em Adam e o abandona, deixando os filhos para trás. O gesto resume sua natureza: fria, estratégica, e incapaz de qualquer vínculo afetivo, nem mesmo com os próprios filhos.

Kate: reinvenção e domínio absoluto

Sob o novo nome de Kate, Cathy assume um papel que domina com maestria: o da dona de um bordel. Ali, ela não apenas trabalha como prostituta, mas rapidamente manipula e envenena a proprietária anterior, Faye, até herdar o negócio. No submundo sexual de Salinas, Cathy exerce poder absoluto, controlando clientes, funcionários e rivais com uma mistura de chantagem, veneno e charme glacial.

O bordel é a metáfora perfeita para sua visão de mundo: relações humanas reduzidas a transações, corpos como mercadoria, sentimentos como fraqueza. É o espaço onde sua natureza pode florescer sem o constrangimento da moralidade. No entanto, mesmo em seu domínio absoluto, Cathy/Kate não encontra paz. Sua existência é marcada pelo isolamento e pela incapacidade de sentir prazer genuíno. Ela não ama, não se apega, não sonha. Ela sobrevive, domina e destrói — mas nunca vive.

A decadência: envelhecimento, paranoia e suicídio

Com o tempo, a saúde física e mental de Cathy começa a ruir. O controle que ela tanto prezava escapa por entre os dedos. O passado retorna em forma de filhos que cresceram sem ela, principalmente Cal (Joseph Zada), que herda sua escuridão, mas com nuances morais que ela nunca teve. A figura do servo chinês, Lee — ausente da versão de Elia Kazan, mas crucial no livro — oferece uma reflexão moral constante que contrapõe o niilismo de Cathy.

A velhice e a perda de poder são insuportáveis para ela. Ao perceber que sua beleza desvanece, que seus jogos não surtem mais efeito e que seus filhos rejeitam sua figura materna, Cathy escolhe o suicídio. Deixa uma carta e uma quantia em dinheiro, como se tentasse — pela primeira e última vez — realizar um gesto humano. Mas é tarde demais. Sua vida foi um deserto emocional onde nenhum afeto germinou.

Motivações e arquétipos: o mal como essência ou escolha?

Steinbeck concebe Cathy não como alguém corrompido pelo mundo, mas como uma espécie de anomalía moral. Ela é uma alegoria do mal irredimível, como uma Lúcifer feminina — bela, sedutora e fatal. Mas ao mesmo tempo, sua existência levanta uma pergunta incômoda: ela nasceu assim ou se tornou assim? A resposta nunca é explícita. A ausência de causas evidentes (abuso, trauma, miséria) é justamente o que mais assusta.

Ela representa uma forma de mal que não se justifica, apenas existe. Sua oposição à figura de Adam — o idealista que quer construir um Éden familiar — é o eixo da narrativa. Como na história bíblica de Caim e Abel, que serve de pano de fundo ao romance, Cathy poderia encarnar o Caim que não se arrepende, que mata e segue em frente. Ela é o “leste do Éden” — o exílio, o desterro moral, a terra de ninguém da alma, o oposto da redenção. Enquanto personagens como Adam ou Cal lutam para superar seus erros, Cathy não vê valor nisso. Para ela, o mundo é um jogo de forças — e ela pretende sempre vencer, até quando tudo já está perdido.

Mas, como East of Eden é uma reinterpretação moderna do mito de Caim e Abel, a intenção do autor foi a de retratar Cathy como a serpente — o agente externo que corrompe, testa, envenena. Ela abandona os filhos à própria sorte, e esse gesto ecoa no conflito entre os irmãos Cal e Aron (Joe Anders). Ao negar amor, Cathy espalha o veneno da rejeição por gerações.

Florence Pugh como Cathy: uma escolha perfeita?

Florence Pugh, com sua capacidade de alternar entre vulnerabilidade e brutalidade (como demonstrado em Midsommar e The Wonder), parece feita para o papel. Cathy exige um tipo de atuação sem filtros: não há espaço para empatia, apenas para o fascínio do abismo. A atuação de Pugh deve explorar o magnetismo da personagem, sua capacidade de dobrar os outros com um sorriso, mas também o vazio que cresce dentro dela como uma erva daninha.

Na nova adaptação, há potencial para desenvolver plenamente a jornada de Cathy — da garota assassina ao império no bordel, da fuga ao colapso final. O que o filme de 1955 apenas insinuou, a série da Netflix pode escancarar: o retrato nu e cru de uma mulher que nunca quis ser redimida.

A sombra mais escura do Éden

Cathy Ames é uma das mais inquietantes personagens da literatura, justamente porque sua maldade não tem explicação — e talvez não precise ter. Em East of Eden, ela representa o que há de mais desconcertante no ser humano: a ausência de amor, a recusa da comunhão, o prazer na destruição. Sua trajetória é uma descida voluntária ao inferno, sem pedidos de socorro. Eu diria que ela surgiu antes do tempo, quando estudos de personalidade ainda estavam engatinhando e mapear sociopatia era virtualmente desconhecido. É mais fácil desenhá-la como demoníaca.

Por isso fico na dúvida se a versão da Netflix vai tentar reler Cathy Ames à luz dos dias atuais. Sua psicopatia é inegável, mas poderia haver um olhar de uma mulher prática usando as armas que tinha disponíveis para sobreviver e decidir sobre seu próprio futuro. A cena em que Adam a visita anos depois e ainda projeta nela a imagem da esposa ideal provocando risos nela sugere que Cathy também possa ser vista como o espelho quebrado do ideal romântico. E ninguém gosta de ver seu reflexo distorcido. A ver se Zoe apostará numa espécie de redenção “atualizada” da vilã.

Isso porque, gostando ou não, Cathy Ames não é apenas um símbolo do mal feminino: é um abismo entre mito e mulher. Um personagem que resiste à simpatia fácil, mas também à leitura simplista. Steinbeck quis criar um monstro, mas, sem querer, revelou uma mulher forjada nas lacunas da moralidade, da religião, da sexualidade e do poder — e que, por isso mesmo, permanece fascinante.


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