A trágica história de Ivan IV, o primeiro czar da Rússia, coroado em 1547, cuja trajetória provoca tanta ambivalência que é conhecido como “Terrível”, dificilmente poderia parecer ser um material para um balé clássico. Mas é uma das obras mais incríveis da atualidade.
Ivan consolidou o Estado russo com mão de ferro, expandiu fronteiras, centralizou o poder e — dizem os cronistas — enlouqueceu gradualmente, mergulhando o país em décadas de terror. Mandou matar membros da nobreza, instaurou a temida guarda pessoal dos oprichniki, criou um Estado dentro do Estado e assassinou seu próprio filho em um acesso de fúria. Ainda assim, permanece como arquétipo de força e soberania, com um legado que mescla glória e violência, e se infiltrou na cultura russa com peso trágico.

Sua história serviu de material potente para um dos artistas mais geniais do cinema, Sergei Eisenstein e, mais tarde, para o coreógrafo Yuri Grigorovich. Em 2025, no ano em que completaram 50 anos do balé, e que marca a morte tanto de Grigorovich como do bailarino que concebeu o primeiro Ivan nos palcos, Yuri Vladimirov, reforça o plano de relembrar como o ballet Ivan, o Terrível foi criado.
Uma trilha sonora icônica transformada em ballet
Embora o filme de Eisenstein tenha sido inovador (mais sobre ele abaixo), e a história de Ivan IV seja estupefante, é a trilha sonora de Sergei Prokofiev que é a semente que une as três vertentes em uma obra inteligente e única.
A música de Ivan, o Terrível foi entre 1942 e 1945, sendo considerada uma das obras mais intensas, sombrias e teatralmente ambiciosas do compositor russo, com partitura que caminha entre o sagrado e o brutal, o coral litúrgico e a marcha militar, o delírio e o lamento.

O filme foi encomendado em plena Segunda Guerra Mundial, quando o ditador Joseph Stálin via com bons olhos a glorificação de figuras históricas autoritárias como Ivan IV — uma tentativa de legitimar a própria repressão sob o disfarce do heroísmo nacional.
O projeto cinematográfico de Sergei Eisenstein era ambicioso. A autorização recebida de Stálin vinha com uma pegadinha: era preciso ressaltar o “espírito de Estado” e a necessidade de um líder forte diante das ameaças externas. O primeiro filme, lançado em 1944, foi aclamado; o segundo, concluído em 1946 mas só exibido postumamente nos anos 50, foi imediatamente censurado. Isso porque mostrava um Ivan mais sombrio, desconfiado até de seus aliados e entregue a rituais quase inquisitoriais. A parte 3 jamais foi finalizada. A censura soviética temia que o retrato de Ivan acabasse soando demasiado próximo da figura de Stálin.
Prokofiev entendeu a tarefa ambígua: precisava retratar um czar temido, mas idealizado como símbolo de unidade. O resultado é uma trilha de contrastes radicais, cheia de ironia e pathos. Há momentos de coro ortodoxo, que evocam a religiosidade eslava e criam uma atmosfera ancestral, como na cena da coroação. Há passagens de marcha e fanfarra que retratam a pompa imperial. Mas também há uma música densamente dissonante, sufocante, que sugere paranoia e ruína: ela se insinua nos trechos que acompanham a perseguição aos boiardos, a morte de Anastásia, o assassinato do filho. Prokofiev escreveu para grande orquestra, mas inseriu instrumentos de percussão brutais, madeiras cortantes, cordas em tremolo e harmonias angulares que conferem uma textura quase expressionista à partitura.

Com a censura ao segundo filme de Eisenstein e a inconclusão do projeto, a música de Ivan ficou em segundo plano por décadas. Prokofiev nunca chegou a elaborar uma suíte de concerto como fez com Alexander Nevsky, e os materiais orquestrais ficaram dispersos. Após a morte do compositor, tentativas foram feitas de reunir os trechos num corpo coerente para concertos e gravações.
Foi o coreógrafo Yuri Grigorovich que, nos anos 1970, solicitou ao compositor Mikhail Chulaki (e mais tarde ao maestro Abram Stasevich, colaborador de Prokofiev) a reestruturação da trilha para o balé do Bolshoi. Grigorovich também incorporou partes de outras obras do compositor — como a Sinfonia nº 3, baseada em sua ópera censurada O Anjo de Fogo —, reforçando os aspectos psicológicos da trilha e acentuando a atmosfera de ruína moral.
Na dança, muito mais do que no filme, é possivel destacar ainda mais a genialidade de Prokofiev que usa a música como linguagem psicológica. Ela não ilustrava a cena, mas analisava, distorcia, dramatizava as emoções e intenções ocultas dos personagens. É uma música que caminha paralela ao texto, às vezes em contradição com ele, criando uma tensão constante entre imagem e som e que, apenas com gestos, é ainda mais impactante.
“Não havia dúvida de que essa música poderia dar vida à dança cênica. Minha ideia baseou-se na música, e não em nada mais”, o coreógrafo explicou sobre a obra. “Havia apenas a música de Prokofiev”, insistiu.
O balé de Grigorovich trouxe nova vida e nova força política à Ivan IV, não apenas porque evoca uma figura histórica controversa, mas porque, como música, ela pergunta continuamente: que preço tem o poder? E quem se beneficia do medo?
Um veículo de propaganda, mas genial
Nada na Arte Russa foi independente do Estado, e é por ter sido virtualmente usada como propaganda por décadas que muitas imagens foram feitas de bailarinos e artistas lendários. Assim, em 1975, quando o Ballet Bolshoi estreou Ivan, o Terrível, não foi diferente.
A Rússia fazia parte da União Soviética, em plena era Brejnev, um período de relativa estabilidade, mas também de repressão política e culto ao passado imperial soviético. Grigorovich encontrou apoio do Partido Comunista para resgatar essa peça quase esquecida – usando a música de Prokofiev e reascendendo a curiosidade do filme de Eisenstein – porque Ivan IV, mais uma vez, era visto pelos líderes políticos como um símbolo de heroísmo russo.
Só que, no palco, mesmo sem admitir, Grigorovich encenou a figura de Ivan como um espelho distorcido do próprio Estado: paranoico, isolado, compelido a dominar pela força, ainda que atormentado por visões e remorsos. Era mais do que uma biografia dançada — era, como todo grande balé soviético, uma mensagem cifrada. O cenário e o figurino foram inspirados na arquitetura e nas belas artes russas antigas, criados por Simon Virsaladze.

A estreia do balé, em fevereiro de 1975, marcou uma das maiores produções do Bolshoi naquele período. No papel de Ivan estava Yuri Vladimirov, que veio a falecer meio século depois, no mesmo dia que o coreógrafo Grigorovich — coincidência quase poética que reforça o interesse de resgatar os detalhes de bastidores da proudção. Natalia Bessmertnova, esposa de Grigorovich e estrela da companhia, interpretou Anastasia, a esposa amada de Ivan cuja morte precipita sua descida aos infernos da desconfiança e da tirania. Boris Akimov completava o triângulo como o Príncipe Kurbsky, antigo aliado e rival político.
Na primeira turnê ao Brasil, em 1986, Bessmertnova e Akimov repetiram seus papéis, com Irek Mukhamedov no papel título. Não os vi no palco, elegi ver Spartacus com os três, mas, cinco anos depois, vi Ivan, o Terrível com a bailarina ao lado de Alexei Fadeyechev em Paris e foi um dos balés mais impactantes que já vi na vida. Conhecia a versão filmada de 1975, com o elenco original, mas esse é um balé que muda radicalmente quando visto ao vivo. Recomendo vê-lo se for possível. Isso porque a narrativa é conduzida por Seis Sinos, que antecipam reviravoltas na vida das personagens com sons festivos ou alarmes trágicos. Os solos revelam a turbulência interna e conflitos dramáticos.
Tudo muito poético, diferente e impactante, unidos na visão de Virsaladze para compor um mundo opressivo, de silhuetas em sombra, escadarias labirínticas e tronos cercados por vultos. A coreografia rompe com o lirismo habitual: em vez de balés narrativos repletos de delicadeza, Grigorovich criou uma dança de peso, quase brutalista, com corpos curvados, braços cerrados e gestos angulares, denunciando tanto a opressão física quanto a agonia psíquica.

E foi justamente essa dimensão que dividiu público e crítica em 1975. Internamente, a obra foi vista como uma ode ao espírito nacional, à glória dos czares — uma leitura cômoda para o regime. Mas fora da União Soviética, muitos críticos enxergaram na obra uma glorificação da autocracia e da violência de Estado. Outros, por outro lado, admiraram a coragem de Grigorovich ao retratar Ivan como figura ambivalente: herói e tirano, visionário e psicótico, símbolo do peso da liderança absoluta. A recepção, portanto, oscilou entre aplausos à grandiosidade e desconforto com o subtexto.
Na Rússia, a figura de Ivan permanece controversa. Durante o império czarista, era lembrado como fundador de Moscóvia. Sob o regime soviético, foi parcialmente reabilitado como um antecessor dos métodos centralizadores. Hoje, sob o governo de Vladimir Putin, sua imagem volta a ganhar espaço como modelo de “liderança forte”, algo que torna ainda mais relevante a análise crítica da sua presença na cultura popular. Obras como o balé de Grigorovich ou os filmes de Eisenstein deixam de ser apenas recriações históricas e se tornam instrumentos de leitura do presente.
A inovação, tanto no cinema quanto na dança, está no uso da arte como análise psicológica do poder. Eisenstein, pioneiro da montagem soviética, usou enquadramentos claustrofóbicos, expressões carregadas, sombras expressionistas e planos que mais pareciam pinturas medievais. Seu Ivan não era apenas um czar — era uma consciência atormentada, sob constante julgamento, um Macbeth ortodoxo. Prokofiev compôs uma trilha que acompanhava essa jornada como um réquiem contínuo, abrindo espaço para o terror e a compaixão.

Grigorovich traduziu essa mesma jornada em movimento, aprofundando a linguagem corporal do balé soviético. Em Ivan, o Terrível, os pas de deux não são momentos de beleza, mas embates. A dança solitária de Ivan é quase uma luta contra forças invisíveis. A morte de Anastasia não é um evento narrativo, mas um colapso interno, coreografado como uma implosão. Ao evitar o sentimentalismo e abraçar a ambiguidade, Grigorovich distanciava-se dos balés soviéticos mais tradicionais e aproximava-se de uma estética expressionista.
Se Giselle é o Hamlet do balé, Ivan é o Giselle dos bailarinos
Há um detalhe na minha avaliação pessoal. Ivan, o Terrível exige de seus intérpretes a mesma fusão de virtuosismo técnico e densidade emocional que Giselle demanda de uma bailarina. Ivan não é apenas um papel dançado: é um papel vivido, carregado de simbolismo político, psicologia fragmentada e força quase xamânica. Não basta girar, saltar ou sustentar a parceira. É preciso convencer que o corpo está implodindo sob o peso do trono, do sangue derramado, da paranoia e do remorso.

Por isso Yuri Grigorovich escolheu Yuri Vladimirov como o primeiro Ivan porque nele havia a conjunção de fatores técnicos e simbólicos. Vladimirov já era um dos principais nomes masculinos do Bolshoi nos anos 70, conhecido por sua força cênica, apuro técnico e sobretudo por uma presença imponente — quase régia — no palco. Mas o fator decisivo foi o seu talento dramático. Grigorovich precisava de alguém capaz de passar da glória à degradação em cena, de sustentar um balé inteiro com o corpo e o olhar, de transitar entre cenas íntimas e grandes blocos corais com autoridade. Vladimirov tinha essa intensidade concentrada, uma expressividade que não precisava ser exagerada para ser devastadora. Era um “ator dançarino” no mais alto grau da tradição russa.
Além de Ivan, o Terrível, Vladimirov brilhou em outros papéis centrais da era Grigorovich, como Spartacus, Lenda do Amor, Lago dos Cisnes e Romeu e Julieta, quase sempre ao lado de sua esposa, a grande Nina Sorokina. Mas foi como Ivan que sua imagem se cristalizou como um ícone da dança soviética — um papel que exigia, simultaneamente, fúria, delírio, religiosidade e colapso.


Em 1975, o segundo elenco incluiu Vladimir Vasiliev e Lyudmila Semenyaka, nos papéis principais, e após Vladimirov, outros grandes nomes assumiram o trono de Ivan com abordagens diferentes. Mikhail Lavrovsky trouxe uma leitura mais introspectiva, torturada, quase sombria, enquanto Irek Mukhamedov, nos anos 80, incorporou uma energia física avassaladora, visceral, que ampliava a animalidade e o descontrole do personagem. Já Andrei Uvarov, mais recente, explorou com precisão a vulnerabilidade emocional de Ivan, sobretudo nos trechos posteriores à morte de Anastasia, com uma interioridade que poucos conseguiram atingir.
No Ocidente, Ivan, o Terrível foi descoberto com atraso — em parte porque o balé nunca saiu oficialmente em turnê internacional nos seus primeiros anos, devido ao teor político e à complexidade logística. Foi uma produção pensada para o palco monumental do Bolshoi, com figurinos pesados, cenários enormes e uma estrutura musical complexa que dificultava exportações. O acesso real ao balé só se deu quando o Bolshoi começou a filmar e distribuir gravações oficiais no fim dos anos 80 e início dos 90. Uma dessas versões — com Mukhamedov no papel-título — foi exibida em festivais e canais europeus, fascinando críticos por sua potência dramática e intensidade quase operística.
Na comparação com outros grandes papéis masculinos, Ivan é, sem dúvida, um dos mais completos e desafiadores. Ele exige do bailarino uma arcada de interpretação emocional que vai do amor à loucura, do êxtase místico à crise moral. Se Spartacus é um herói trágico épico, Ivan é um tirano em decomposição espiritual. A coreografia impõe desafios técnicos imensos — com solos longos, tensos, carregados de gestos simbólicos e variações físicas que envolvem a resistência de um atleta e o timing de um ator de tragédia grega.

Ivan, o Terrível é, portanto, não apenas uma peça de repertório: é um rito de passagem para o bailarino que deseja provar seu alcance artístico. E como todo grande papel, ele molda quem o dança — mas também revela o que cada intérprete tem a dizer sobre o poder, o medo e a história que herdamos.
Hoje, passados cinquenta anos da estreia e em meio à morte de seus criadores originais, Ivan, o Terrível se impõe como um documento histórico e artístico sobre os riscos do poder absoluto. É uma obra que continua a reverberar em tempos de reescrita da história, de nostalgia imperial e de debates sobre liderança e autoritarismo. Não por acaso, volta ao repertório do Bolshoi sempre em momentos de inflexão nacional.
O balé foi encenado pelo Bolshoi até 1990 e ficou em um hiato até 2012, quando voltou para o repertório definitivamente. Além de estar nas turnês internacionais, a Ópera de Paris também montou sua versão, em 2004.
Ao transformar o czar mais controverso da Rússia em protagonista de um balé monumental, Grigorovich nos lembra que o palco é, muitas vezes, o espelho mais fiel das nossas angústias políticas. Ivan, o Terrível dança não apenas sobre a história — mas sobre como decidimos lembrá-la.
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