Publicado em 1944, o romance Leave Her to Heaven, de Ben Ames Williams, foi um dos grandes sucessos editoriais da década. Williams, já um autor respeitado e prolífico com mais de 30 livros publicados, escreveu sua obra mais ambiciosa naquele momento, fundindo elementos do romance psicológico, do melodrama e até do suspense criminal. A inspiração para a personagem Ellen Berent — a mulher deslumbrante, obsessiva e perigosamente possessiva — teria vindo, segundo o próprio autor, de sua fascinação pelos limites morais da devoção amorosa, tema que vinha sendo explorado na literatura gótica e nos romances femininos da época, mas raramente com tamanha frieza narrativa.

O título foi retirado de Hamlet, um recurso literário que imediatamente conferia à obra um verniz trágico e clássico. Na peça de Shakespeare, a fala “Leave her to heaven” refere-se à culpa de Gertrude, a rainha, que deveria ser julgada por Deus, e não por homens. Williams reaproveita esse conceito para dar profundidade à trajetória de Ellen: bela, aristocrática, culta e aparentemente virtuosa, ela revela-se, aos poucos, moralmente insustentável. A motivação que guia a narrativa não é o crime em si, mas os sentimentos que o antecedem — o ciúme, a insegurança, o narcisismo, a recusa em dividir o amor.
O livro foi um best-seller imediato. O público foi atraído tanto pela trama envolvente quanto pela construção da personagem central. A figura da “mulher fatal” já estava em voga na literatura e nos cinemas da época, mas a Ellen de Williams tinha algo novo: ela não era uma prostituta, nem uma oportunista. Era uma mulher de “boa família”, rica, educada, e que amava profundamente — apenas de forma destrutiva. Essa inversão de expectativas perturbou leitores e críticos. A revista Saturday Review chamou o livro de “um estudo provocador da psicopatia envernizada pelo bom gosto”. Já o New York Times elogiou a habilidade de Williams em manter o leitor em estado de tensão psicológica até o fim, sem recorrer a sensacionalismos fáceis.

Críticos literários mais conservadores, no entanto, expressaram desconforto com a ambiguidade moral da obra. Não havia uma “redenção” tradicional para os personagens, nem uma denúncia clara da vilania de Ellen. O livro exigia que o leitor compreendesse uma mente disfuncional sem que houvesse uma moralidade evidente como guia. Isso o aproximava, em certo sentido, das obras de Patricia Highsmith, que mais tarde criaria personagens igualmente fascinantes e desconcertantes, como Tom Ripley.
Na época, poucos romances psicológicos com protagonista feminina tinham sido escritos com essa ousadia emocional — Rebecca, de Daphne du Maurier (1938), é talvez a comparação mais próxima. Assim como no romance de du Maurier, o de Williams também se apoia em um cenário bucólico e isolado, onde as tensões emocionais ganham forma. Mas enquanto Rebecca sugere que o amor pode sobreviver mesmo ao mistério e ao ciúme, Leave Her to Heaven leva a ideia ao extremo: quando o amor exige exclusividade total, ele se transforma em tirania.


O sucesso foi tamanho que, ainda em 1944, a 20th Century Fox comprou os direitos de adaptação. O estúdio percebeu o potencial escandaloso e emocional da trama, especialmente centrado na figura feminina — algo que atraía o público pós-guerra, ávido por narrativas que combinassem romantismo e inquietação. A campanha publicitária do filme mais tarde exploraria essa tensão, com slogans como “He married the girl of his dreams — and woke up to a nightmare”.
Curiosamente, muitos leitores se lembravam de trechos inteiros do livro por sua escrita seca, precisa e emocionalmente carregada. A prosa de Ben Ames Williams não era lírica nem rebuscada: era direta, quase clínica, o que contrastava com a exuberância dos cenários e da trama. Isso facilitou a transposição para o cinema, onde as imagens falariam por si.

Hoje, o romance é menos lido do que o filme é visto, mas continua sendo uma peça-chave na evolução da figura da mulher fatal na literatura americana. Ele representa um ponto de inflexão entre o melodrama romântico e o thriller psicológico moderno. O legado de Leave Her to Heaven, enquanto livro, reside não apenas em sua adaptação bem-sucedida, mas na forma como abriu caminho para retratos mais nuançados — e inquietantes — da psique feminina na literatura popular dos Estados Unidos.
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