Não faço segredo da minha insatisfação com a adaptação histérica pop de The Buccanneers na Apple TV+, lançada em 2023 e que agora em junho volta com sua segunda temporada. No trailer final, várias subtramas foram antecipadas.
Vemos como a Duquesa de Tintagel, Nan (Kristine Frøseth) enfrenta as consequências de seu casamento com Theo, uma união motivada pela necessidade de salvar sua irmã Jinny. Ela se sente dividida entre seu papel de esposa e seus sentimentos por Guy, seu verdadeiro amor. Para piorar, sua sogra reforça as pressões sociais de ser uma esposa obediente.

Jinny (Imogen Waterhouse), grávida, está foragida após escapar de um casamento abusivo, ajudada por Guy. O relacionamento entre Mabel (Josie Totah) e Honoria (Mia Threapleton) também ganha destaque, com as duas reafirmando seu amor em meio a uma sociedade que não aceita sua união.
E o mais importante é a entrada de Leighton Meester em um papel ainda não revelado. A segunda temporada promete explorar profundamente temas como identidade, liberdade feminina e os limites das convenções sociais, mantendo o foco na amizade entre as protagonistas e suas lutas por autonomia em um mundo que tenta controlá-las. E que tal? NADA disso estava no livro de Edith Wharton. Não seria mais fácil ter criado uma série original, como fez Julian Fellowes com The Gilded Age?
A série The Buccaneers, lançada pela Apple TV+ em 2023, era para ser uma adaptação do romance homônimo deixado inacabado por Edith Wharton em 1938 e finalizado por Marion Mainwaring em 1993, mas é uma versão “bastante livre”. Embora compartilhem o mesmo ponto de partida — jovens herdeiras americanas indo à Inglaterra em busca de maridos aristocráticos —, a série e o livro caminham em direções muito diferentes. A proposta da adaptação é deliberadamente revisionista: em vez de tentar replicar o estilo ou a visão crítica de Wharton, a série atualiza personagens, situações e conflitos para dialogar com o público contemporâneo. O resultado é uma obra que se aproxima mais da linguagem pop e feminista de Bridgerton do que da elegância amarga e profundamente ambígua que marca a prosa whartoniana.
No livro, Nan St. George é a caçula do grupo de “buccaneers”, um tanto rebelde, mas não fora dos moldes sociais impostos às mulheres de sua classe e tempo. Sua trajetória é marcada por uma tensão crescente entre desejo e dever. Após um envolvimento intenso com Guy Thwarte — aristocrata britânico arruinado e apaixonado por ela —, Nan acaba por se casar com o Duque de Trevenick. O casamento é vantajoso do ponto de vista social, mas a torna profundamente infeliz, sendo que Nan permanece presa à instituição do casamento, tal como outras heroínas whartonianas, como Ellen Olenska em The Age of Innocence ou Lily Bart em The House of Mirth. A crítica de Wharton ao sistema social que tritura as mulheres é feita com uma ironia sutil e uma visão melancólica da impossibilidade de realização individual dentro das estruturas convencionais.


Na série, por outro lado, Nan é colocada desde o início como uma figura indomável, que questiona as regras do jogo e desafia tanto a sociedade americana quanto a britânica. A escolha por dar a ela uma origem adotiva — e a subsequente revelação de que sua mãe biológica é uma mulher de classe inferior — não apenas não existe no livro, como representa uma guinada dramática que coloca a questão da identidade no centro da narrativa. Enquanto no romance a crítica é voltada ao aprisionamento das mulheres dentro do casamento e da aristocracia, na série ela ganha contornos de um drama sobre pertencimento, liberdade individual e emancipação emocional. A revelação da adoção funciona como metáfora para a recusa de Nan em se submeter ao papel que lhe foi atribuído — o de esposa decorativa — e impulsiona sua decisão de abandonar o duque e fugir com Guy, algo impensável na lógica de Wharton.
Outro aspecto que marca fortemente a adaptação é a transformação de Mabel Elmsworth e Honoria Marable em um casal. No livro, ambas são personagens coadjuvantes, envolvidas em tramas paralelas de casamento e desilusão. Na série, seu relacionamento homoafetivo é tratado com destaque, afeto e respeito, tornando-se uma das linhas mais importantes da trama. É uma abordagem inteiramente nova, que insere The Buccaneers no rol de obras contemporâneas preocupadas com representatividade e diversidade. Embora Edith Wharton tenha convivido com figuras da comunidade LGBTQ+ e até demonstrado interesse sutil por personagens ambíguos em sua obra, ela nunca escreveu explicitamente sobre relações homoafetivas. Ao fazer isso, a série moderniza radicalmente o material original, ainda que perca nuances importantes da crítica social indireta que caracteriza a autora.
O caso de Conchita Closson é igualmente revelador. No romance, ela é uma jovem impulsiva que se casa com um lorde britânico e logo percebe que não é bem-vinda na aristocracia inglesa. Abandonada e isolada, ela representa mais uma vítima do sistema, resignada e silenciosa. Já na série, Conchita é vibrante, decidida, carismática — e talvez a personagem que melhor encarne o espírito libertário da adaptação. Seu casamento fracassado não a define: ela enfrenta os sogros, mantém a guarda da filha, e se recusa a se apagar para caber nos padrões da nobreza britânica. Em vários momentos, ela serve como âncora emocional para o grupo, reforçando a ideia de sororidade e apoio mútuo entre as protagonistas — algo bem mais presente na série do que no romance.

Há também diferenças estilísticas fundamentais. O texto de Wharton, mesmo finalizado por Mainwaring, conserva o ritmo, o vocabulário e a estrutura moral dos romances de fim do século 19. A adaptação, em contraste, emprega trilha sonora pop, diálogos com gírias contemporâneas e um tom abertamente emocional. A estética da série, embora cuidadosamente produzida, não busca reconstruir fielmente a Inglaterra vitoriana — ela a estiliza, distorce e atualiza. É um projeto que aposta na identificação direta com o público atual, mesmo que isso signifique abandonar o tom mais contido, introspectivo e ambivalente da obra original.
Por fim, vale observar que a maior ruptura entre a série e o livro talvez seja de ordem filosófica. Para Edith Wharton, a tragédia das mulheres ricas do Gilded Age não era a falta de liberdade individual, mas o conflito entre desejo e estrutura, entre paixão e convenção, entre modernidade e tradição. Suas personagens frequentemente cedem, não por fraqueza, mas porque a sociedade as engole, de forma inexorável. Em The Buccaneers da Apple TV+, essa lógica é invertida: as protagonistas reagem, gritam, fogem, amam como querem e constroem juntas uma nova ideia de felicidade, ainda que provisória. O pessimismo elegante de Wharton cede lugar a um otimismo revolucionário, que transforma a opressão em aventura e a decepção em crescimento pessoal.

Em suma, The Buccaneers (2023) não é uma adaptação fiel, e nem pretende ser. É uma releitura livre, vigorosa e politicamente engajada, que usa os esboços de Edith Wharton como ponto de partida para imaginar uma história de mulheres jovens enfrentando velhos mundos — e vencendo, ao menos por um tempo. Para quem conhece o livro, a experiência pode ser de estranhamento. Para quem não conhece, pode ser apenas mais uma série de época com figurinos deslumbrantes e rebeldia romântica. Mas, para ambas audiências, talvez reste o mesmo fascínio: o de ver essas “bucaneiras” navegando contra a corrente, reinventando suas próprias regras, e questionando, à sua maneira, os pactos sociais que ainda tentam domesticá-las.
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