Entre os seis romances completos de Jane Austen, Northanger Abbey talvez seja o menos celebrado — o “primo esquecido” da família literária que inclui obras como Orgulho e Preconceito ou Razão e Sensibilidade. Lançado postumamente em 1817, ao lado de Persuasão, o livro já havia sido escrito muitos anos antes: Austen finalizou sua primeira versão ainda no final da década de 1790, sob o título Susan. Foi seu primeiro romance concluído e vendido a um editor, mas permaneceu inédito por mais de uma década, até ser revisado e rebatizado pela autora como Northanger Abbey.
Devo confessar que não curti o livro quando o li pela primeira vez, por isso não curti das versões filmadas e é um dos que menos revisitei da autora. Achava que era um problema pessoal, mas estou dentro do padrão. Muitos consideram que ele seja deslocado dentro do conjunto austeneano. É um livro ainda jovem — na linguagem, na construção das personagens, na ironia mais evidente e direta. Mas também já anuncia muito do que Austen faria com mais refinamento e sutileza depois. Na tentativa de resgatá-lo, vale viajar no tempo para entendê-lo.

Uma sátira antes do tempo
Como mencionei, Jane Austen começou a escrever o romance por volta de 1798–1799, e o completou por volta de 1803. Ou seja, trabalhou nele no mesmo tempo que escreveu Razão e Sensibilidade (primeira versão em 1795), publicado em 1811 ainda anonimamente assim como Orgulho e Preconceito (escrito em 1796 e 1797), publicado em 1813, seu livro mais famoso. E nesse cenário, Northanger Abbey se destaca, desde o início, por seu tom abertamente satírico.
Ela tinha pouco mais de 20 anos quado imaginou a história e vendeu os direitos autorais do manuscrito a um editor chamado Crosby & Co., que nunca o publicou. Austen chegou a escrever uma carta pedindo a publicação (ou a devolução dos direitos), mas foi ignorada.
Nele, Austen mira, com prazer visível, o gênero do romance gótico — extremamente popular na virada do século 18 para o 19. A protagonista, Catherine Morland, é uma jovem impressionável que devora esse tipo de literatura, cheia de mosteiros sombrios, vilões cruéis e heroínas desmaiadas. Quando visita a abadia de Northanger, Catherine projeta esses enredos fantasiosos na realidade à sua volta, acreditando estar vivendo um mistério tenebroso. Mas Austen, com mão firme, desmonta essas ilusões e faz da ingenuidade de Catherine um espelho delicado — e por vezes hilário — do modo como as mulheres, sedentas por agência e aventura, se agarravam à ficção para escapar da monotonia imposta a elas.
Essa sátira não é cruel. Embora alguns leitores vejam Catherine como uma espécie de “pre-Austen”: uma personagem que antecipa as grandes heroínas, mas ainda está em fase de rascunho, ela é uma das protagonistas mais doces e humanas da autora. Austen não a pune por sua imaginação fértil, apenas a faz crescer. No fundo, o romance não zomba da fantasia — ele a respeita, mas propõe um amadurecimento. O verdadeiro perigo, sugere Austen, não está em abades malvados, mas nas estruturas sutis de poder, nos julgamentos apressados, no interesse social disfarçado de gentileza.

Um ensaio sobre a leitura
Além de parodiar o romance gótico, Northanger Abbey também é um comentário metalinguístico sobre o próprio ato de ler. Austen interrompe a narrativa para conversar diretamente com o leitor, defender o gênero do romance — frequentemente ridicularizado como “coisa de mulherzinha” — e reivindicar seu valor literário e social. Em tempos em que a ficção escrita por mulheres era vista como inferior, Austen escreve com clareza: “O romance é uma obra em que as maiores habilidades do entendimento humano são demonstradas, onde o mais amplo conhecimento da natureza humana é felizmente exibido”.
Esses momentos de intervenção direta fazem de Northanger Abbey uma obra particularmente moderna, quase ensaística. Ela é menos lapidada que os romances mais tardios de Austen, mas essa crueza dá a ela um sabor especial — é como espiar os bastidores do processo criativo de uma autora genial em formação.
Muitos estudiosos notam que Northanger Abbey tem uma estrutura narrativa mais solta e episódica do que os romances mais maduros de Austen. O tom muda com frequência: começa como uma comédia de costumes provinciana, depois vira uma sátira gótica, para enfim retornar a um final romântico convencional e um tanto apressado. O clímax — a expulsão repentina de Catherine por parte do General Tilney — é resolvido em poucas páginas, quase sem elaboração emocional.
Essa aceleração no fim pode ser resultado da juventude da autora, mas também de uma revisão interrompida. É possível que Austen tivesse planos para desenvolver mais os personagens (como Eleanor Tilney, por exemplo) ou dar mais peso emocional à transformação de Catherine — mas não teve tempo ou liberdade editorial para isso.
O menos adaptado, o menos amado?
Northanger Abbey nunca teve o mesmo apelo comercial que Orgulho e Preconceito ou Emma, e isso se reflete nas poucas adaptações que recebeu no cinema ou mesmo na TV. Em parte, isso se deve ao seu tom híbrido: nem totalmente cômico, nem completamente romântico, nem propriamente gótico — apenas uma sátira de tudo isso, com um final que soa quase abrupto. O próprio herói, Henry Tilney, é considerado por alguns leitores como um dos mais apagados da galeria austeneana, embora sua ironia gentil e sua sensibilidade o tornem, para outros, um personagem encantadoramente realista.

As principais adaptações para TV incluem:
- “Northanger Abbey” (1986): uma versão feita para a televisão britânica, com Katharine Schlesinger e Peter Firth. Bastante fiel ao livro, ainda que datada em ritmo e estética.
- “Northanger Abbey” (2007): produzida pela ITV como parte da série de adaptações dos romances de Austen. Com Felicity Jones como Catherine e JJ Feild como Henry, é uma das mais acessíveis e visualmente agradáveis, embora adicione cenas de “fantasias góticas” mais explícitas do que o livro sugere, tornando a sátira um pouco mais literal.
Fora isso, o romance raramente inspira grandes releituras contemporâneas, ao contrário de outras obras de Austen que foram transpostas com liberdade (As Patricinhas de Beverly Hills (Clueless), por exemplo, como versão de Emma). Talvez por isso, Northanger Abbey ainda seja visto como o “menor” dos seus romances — o que é uma simplificação injusta.
O charme da imperfeição
Em comparação com a ironia contida de Emma ou a profundidade melancólica de Persuasão, Northanger Abbey parece mais simples — quase juvenil. Mas é justamente isso que lhe dá valor. É uma janela para uma Austen mais espontânea, mais direta, quase experimental. É também o único romance em que a autora, de fato, mostra seus personagens lendo romances, discutindo literatura, questionando o que é “válido” como leitura — algo que ecoa até hoje.
Somente em 1816, quando readquiriu os direitos e começou uma revisão — rebatizando a obra como Northanger Abbey, ela o atualizou uma vez que a versão original fazia referências bastante específicas a modas literárias do final do século 18, especialmente aos romances góticos populares na época (como os da autora Ann Radcliffe e seu Os Mistérios de Udolpho). Nessa atualização, Austen ajustou alguns nomes e termos — como substituir “Camila” ou “Cecilia”, obras de Fanny Burney, como referências “atuais” — mas essas atualizações são parciais. Há um descompasso entre o momento da escrita e o momento da publicação, o que sugere que ela talvez não tenha conseguido ou desejado fazer uma revisão profunda.
Como Austen morreu em 1817 sem ver o romance publicado, tudo indica que essa revisão ficou inacabada ou, no mínimo, superficial. Ou seja: o livro foi publicado postumamente por seu irmão Henry, em conjunto com Persuasão, sem que ela tivesse a oportunidade de revisá-lo como fez com obras como Emma ou Mansfield Park.

Mas o que talvez o que contribua para aparente rejeição de Northranger Abbey seja que hoje poucos leitores têm familiaridade com os romances que são essenciais para acompanhar a sátira. Ela perde força porque estamos rindo de um gênero que já não tem mais o mesmo peso cultural. Para muita gente, a parte gótica parece um desvio de tom, ou até uma parte esquisita do livro.
Assim, para muitas leitores, Northanger Abbey é o “Austen B-side” que é curioso, promissor, engraçado em momentos — mas que não alcança o brilho narrativo de outras obras.
Se Catherine Morland é, de certa forma, a menos sofisticada das heroínas de Austen, ela é também a mais próxima do leitor comum. Seu desejo de viver uma história extraordinária é o desejo de qualquer leitor diante de um livro aberto. Northanger Abbey é, assim, um comentário terno e inteligente sobre a própria função da ficção. E, como todo romance que começa satirizando algo e termina se apaixonando por ele, talvez ele mereça um olhar mais cuidadoso — ou uma segunda leitura, agora com menos expectativa de gótico e mais abertura à sua ironia delicada.
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