Nick Cave sempre foi mais do que um cantor. Poeta, romancista, roteirista, performer, pensador e — mais recentemente — ceramista, o artista australiano construiu uma das trajetórias mais ricas, inquietas e comoventes da cultura contemporânea. Com uma carreira que atravessa mais de quatro décadas, ele continua desafiando os limites da arte e da emoção, convertendo a dor em beleza e transformando luto em linguagem. Em 2025, Cave não apenas lançou novos projetos — como o álbum Wild God, a turnê homônima e um papel na série baseada em seu próprio livro — como reafirmou o papel do artista como aquele que traduz o mundo quando tudo parece intraduzível.
Sua história começa nos anos 1980, quando, à frente do The Birthday Party, esculpia um som abrasivo e caótico, herdeiro direto do pós-punk mais visceral. Mas foi com o Nick Cave and the Bad Seeds que sua voz encontrou um terreno fértil para maturar: as composições ganharam espessura bíblica, gótica, sensual e litúrgica. Álbuns como The Boatman’s Call (1997), Push the Sky Away (2013), Skeleton Tree (2016) e Ghosteen (2019) revelam um artista em constante transformação — ora profeta, ora amante devastado, ora cronista do vazio.

Nos últimos anos, após a morte trágica de seu filho Arthur em 2015, Cave se lançou num mergulho ainda mais profundo em busca de sentido. A dor não o silenciou. Ao contrário: ela transbordou em discos, entrevistas e num projeto que acabou se tornando um dos gestos mais singelos e poderosos de sua carreira — o site The Red Hand Files. Nele, Cave responde diretamente a perguntas enviadas por fãs. Os temas vão de “como lidar com o luto?” até “o que significa escrever uma canção?”, passando por questões de fé, política, arte e cotidiano. O tom é sempre íntimo, fraterno e, sobretudo, honesto. Estima-se que ele dedique três dias por semana às respostas. Um artista que escuta. Um homem que não se esconde atrás do mito.
Essa disposição para o diálogo também se expressa em sua autobiografia recente, Fé, Esperança e Carnificina, uma longa conversa com o jornalista Seán O’Hagan. O livro revela um Cave reflexivo, espiritualizado, mas sem dogmas; alguém que lida com a devastação emocional da perda ao mesmo tempo em que busca beleza nas menores coisas. Em muitos momentos, Cave se aproxima mais de um teólogo errante do que de um popstar — e isso o torna ainda mais relevante num tempo de ruído e superficialidade.
Em 2024, Cave retornou com Wild God, o primeiro álbum gravado com todos os membros dos Bad Seeds desde 2016. Produzido em parceria com Warren Ellis, o disco marca um novo momento, menos sombrio do que Ghosteen, mas igualmente carregado de densidade emocional. As letras continuam metafísicas, entrecortadas por imagens de fé, tentação, desejo e rendição. A turnê mundial de Wild God, iniciada em 2024 e em curso em 2025, é um sucesso de público e crítica, marcando também o reencontro do artista com os palcos da América do Norte após sete anos.

Mas Cave não parou por aí. Durante a pandemia, ele surpreendeu ao apresentar ao público uma série de cerâmicas intitulada The Devil: A Life, composta por 17 peças que narram, de maneira quase infantil e ao mesmo tempo pungente, a trajetória do Diabo — da queda à redenção. Exposta na Holanda, a série revela outra face do artista: o artesão que trabalha com as mãos, que modela o mal em busca de compaixão. Nas palavras do próprio Cave, o projeto surgiu como forma de buscar conforto e significado em um momento em que o mundo parecia esfarelar.
Neste ano, ele também participa do álbum beneficente Los Angeles Rising, ao lado de artistas como PJ Harvey e Flea, em apoio às vítimas dos incêndios florestais na Califórnia. E ainda terá sua ficção adaptada para a TV: The Death of Bunny Munro, livro de 2009, virou série com Matt Smith (de Doctor Who e House of the Dragon) no papel principal. O lançamento é esperado para o fim de 2025.
Essa multiplicidade de atuações — música, literatura, arte visual, comunicação direta com os fãs — não é um artifício de um artista que tenta se reinventar desesperadamente. No caso de Cave, é uma necessidade existencial. Ele nunca foi apenas um cantor, e talvez nunca tenha sido, de fato, um “rockstar”. É um narrador do abismo, alguém que escreve para não afundar — e nos estende a mão no processo.
O que o torna raro hoje é, paradoxalmente, o que sempre o fez parecer deslocado: sua recusa em simplificar a experiência humana. Nick Cave não oferece conforto fácil, mas nos lembra que a arte ainda pode ser um lugar de confronto com o que mais tememos — a perda, o amor, o tempo, a morte — sem deixar de acreditar na possibilidade de transformação. Sua obra é uma elegia viva. Uma oração laica. Um testemunho da dor — e da beleza que ainda se pode tirar dela.
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