Lá vamos nós novamente: George R. R. Martin desfilou uma série de queixas em seu blog e em entrevistas tanto dos fãs que o cobram pelo fim da saga de As Crônicas de Gelo e Fogo, assim como o quanto está insatisfeito com o resultado de House of the Dragon e as liberdades criativas sobre sua história. Já falei sobre isso antes, em mais de uma oportunidade e o entendo perfeitamente.
Escrever para o papel ou para TV ou para o Cinema são, cada uma, uma forma diferente. Os livros permitem a imaginação livre do autor, mas a do leitor também. Cria um vínculo bem mais forte entre os dois. Já TV e Cinema é de um peso maior do lado do autor, que controla o visual, as falas e tudo de uma maneira muito clara, ainda que cada um na platéia se conecte de forma individual. Daí, falar de adaptação é sempre entrar em terreno minado. Mas há bons resultados e nem todos autores se ofendem com o sistema como GRRM. Melhor, não são vocais como ele.


“A maioria das adaptações de livros que vemos atualmente para cinema e televisão piora a história original”, escreveu Martin. “Os showrunners muitas vezes pensam que podem melhorar o livro — que sabem mais do que o autor. Não é impossível, claro. Às vezes conseguem. Mas isso é raro. Muito raro.” Ele ainda completou dizendo que muitos desses profissionais acreditam estar “corrigindo” o autor, quando, na verdade, estão desvirtuando a essência da obra. Embora tenha feito algumas exceções, como a série Shōgun, que classificou como um raro exemplo de adaptação respeitosa e bem-feita, Martin reiterou seu incômodo com a maneira como muitos clássicos da literatura têm sido maltratados nas telas.
Esse desabafo foi interpretado por muitos como uma crítica indireta à própria série Game of Thrones, que começou como uma adaptação fiel de seus livros, mas se afastou completamente da trama original nas temporadas finais, culminando em um desfecho controverso. Não é segredo que Martin ficou desconfortável com o rumo que os showrunners David Benioff e D.B. Weiss deram à série após ultrapassarem os livros publicados. Desde então, o autor vem reiteradamente defendendo a importância de se manter a integridade das histórias criadas nos livros, algo que, segundo ele, se perdeu quando a televisão decidiu “ir mais rápido” que a narrativa original.

Eu compartilho a frustração quanto às mudanças de House of the Dragon, cujo capítulo que elegeram de Fogo & Sangue, o que trata da guerra civil entre Targaryens é um dos mais impactantes e está quase irreconhecível nas telas, amenizando passagens violentas e alterando o coração do conflito – a briga entre irmãos – para um impasse entre duas mulheres. Claro que é uma opinião pessoal.
Já quanto a Game of Thrones, o “errado” é George R.R. Martin. A série estreou em 2011, quando já tinham quatro livros publicados e faltava apenas um: Winds of Winter. Estamos em 2025 e o escritor já anunciou tantas vezes que está para finalmente entregar o livro que perdeu a crebilidade. Algo que também endereçou no seu blog. “Você não se importa com nada além de VENTOS DE INVERNO. Você já me disse isso tantas vezes”, ele falou com os fãs quando anunciou outros projetos nos quais está envolvido. “Me importo com Westeros e WINDS também. Os Starks, Lannisters e Targaryens, Tyrion e Asha, Dany e Daenerys, os dragões e os lobos gigantes, eu me importo com todos eles. Mais do que você pode imaginar”, garantiu. Importar, não duvido, mas está com um impasse e não pode negar.
Não gostei da condução da conclusão de Game of Thrones e discordei com algumas soulções, já falo há anos aqui em MiscelAna. Também insisto na minha opinião pessoal de que D&D fizeram o melhor que puderam com o que tinham em mãos na época. E mais: o fato de que quase 10 anos depois que a série acabou e o livro não chegou às lojas é sinal de que o que foi ao ar – e massivamente rejeitado – era o final planejado por Martin. Sim, Daenerys enlouquecida, morta, etc. Ele perdeu o trem e foi atropelado (desculpem a piada) com os ventos frios do tempo. A cultura atual não aceita muitas das desculpas que ele dava para os maltratos femininos refletirem um tempo como o medieval e com isso muito da história (como aconteceu na série) fica encurralado. Seria mais honesto admitir, mas é o que temos.

A fala GRRM, como esperado, repercutiu fortemente entre os fãs, muitos dos quais compartilham a frustração de verem livros amados sendo radicalmente alterados nas versões audiovisuais. Nas redes sociais, leitores relembraram casos emblemáticos como Percy Jackson, Eragon, Duna (em suas primeiras versões), O Hobbit e até adaptações contemporâneas como A Roda do Tempo e Os Anéis de Poder, cujas liberdades criativas dividiram opiniões. Para muitos, a queixa de Martin resume um sentimento antigo: o de que as nuances dos livros são frequentemente sacrificadas em nome de ritmo acelerado, simplificações ou tentativas de modernizar personagens e tramas sem compreensão real da obra original.
Outros escritores também já manifestaram frustações semelhantes. Neil Gaiman, autor de Sandman, chegou a criticar duramente tentativas anteriores de adaptação de sua obra por insistirem em reescrever personagens ou remover partes fundamentais da narrativa. Quando finalmente conseguiu controlar a versão da Netflix, Gaiman deixou claro que sua prioridade seria preservar o espírito da história — algo que Martin parece clamar para que se torne regra, não exceção. Stephen King, apesar de ser amplamente adaptado, também já demonstrou insatisfação com vários filmes baseados em seus livros, inclusive chamando O Iluminado, de Stanley Kubrick, de “frio e desumano”, apesar de seu status cult.
Aproveito para jogar aqui que não é apenas a fantasia que sofre com a transferência das páginas para as telas. Romances de Época tem esbarrado cada dia mais com anacronismos que destroem o origial. A versão da Netflix para Persuasão alterou tão profundamente a personalidade da heroína, Anne Elliot, que ficou sem sentido como uma mulher tão firme e opinativa teria se deixado influenciar para fazer escolhas erradas no passado. O coração de toda história (referidas no título).
A mais perto do ofensivo, no entanto, é The Buccaneers.



O livro inacabado de Edith Wharton, uma das mais importantes escritoras americanas do início do século 20, foi completado pela escritora inglesa Marion Mainwaring e publicado em 1993, 56 anos depois, como uma “versão final”. Mainwaring se baseou em esboços, anotações e capítulos deixados por Wharton e nunca foi 100% aceita pelos fãs.
Isso por si só já renderia muita discussão, mas piora. A série da Apple TV+ decidiu alterar significativamente tanto o original de 1937 como a final de 1993. Basicamente, só manteve o título, nomes de personagens e uma quase irreconhecível linha da história. No mais é radicalmente algo “original”, completamente na escola de Bridgerton. Só que a série da Netflix tem uma dualidade: a história (fraca e melodramática) é fiel ao livro, o elenco inclusivo e a trilha sonora moderna funcionam por isso. Em The Buccaneers nem isso.
Como Wharton, diferentemente de Martin, não tem como se expressar eu tomo a liberdade de opinar: é ofensivo. Ninguém impede a criação de novas histórias, ainda mais se achar que a original não funciona em tempos atuais. Romances do período da Gilded Age não vão de encontro com os ideais feministas, ao contrário. Nem Jane Austen, falando nisso. Se é politicamente incorreto, deve ser contextualizado ou esquecido, mas atualizado? Não concordo.


As adaptações que vêm por aí de O Morro dos Ventos Uivantes e Orgulho e Preconceito me dão ansiedade também por isso. A fala de George R.R. Martin, portanto, vai além de uma simples reclamação: é uma declaração pública sobre autoria, respeito criativo e o valor do texto literário.
Em tempos em que adaptações se multiplicam graças ao apetite das plataformas de streaming por conteúdos já testados e com base de fãs consolidada, o alerta do autor ressoa como um pedido por integridade — e talvez, por mais humildade por parte da indústria audiovisual. Resta saber se, com o avanço de séries como House of The Dragon e O Cavaleiro dos Sete Reinos, em produção pela HBO, Martin conseguirá ver seu próprio universo retratado da forma que sempre imaginou. Duvido.
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