Em setembro de 2025, completam 65 anos de morte de Melanie Klein, uma das mais influentes e controversas psicanalistas do século 20. Judia austríaca nascida em Viena em 1882, Klein revolucionou a clínica psicanalítica ao voltar seu olhar para o mundo emocional das crianças, e ao propor que a vida psíquica se inicia muito antes do que Freud havia suposto. Suas contribuições teóricas e clínicas reconfiguraram a psicanálise — sobretudo no mundo anglófono e na América Latina — e geraram intensos debates que perduram até hoje.
A infância de Klein foi marcada por perdas e lutos. Ainda menina, viu morrer sua irmã Sidonie, e mais tarde, seu irmão Emmanuel, com quem mantinha uma relação intelectual intensa. A morte do pai quando ela tinha 18 anos a deixou emocional e financeiramente vulnerável, influenciando o curso de sua vida. Casou-se jovem com Arthur Klein, com quem teve três filhos, mas o casamento foi infeliz e terminou em separação. Melanie já estava mergulhada no estudo de Freud e nas discussões da então nascente psicanálise quando se mudou para Budapeste e foi analisada por Sándor Ferenczi. Mais tarde, em Berlim, iniciou uma análise com Karl Abraham — discípulo direto de Freud — e foi com seu apoio que começou a clinicar, especialmente com crianças pequenas, algo ainda inédito na época.

Em 1926, fixou-se em Londres, onde encontrou um ambiente fértil para desenvolver suas ideias. Foi lá que elaborou, ao longo das décadas seguintes, sua teoria das relações de objeto — uma das grandes correntes da psicanálise contemporânea. Contrariando a ênfase de Freud no complexo de Édipo como ponto de origem da vida psíquica, Klein propôs que o bebê, desde os primeiros meses de vida, já lida com angústias profundas, desejos ambivalentes e defesas psíquicas sofisticadas. A mente infantil, segundo ela, estrutura-se em torno de fantasias inconscientes ligadas ao seio materno, percebido ora como bom, ora como persecutório. Essa divisão radical entre figuras boas e más marca o que Klein chamou de posição paranoide-esquizoide — um estado psíquico primordial. À medida que a criança amadurece e reconhece que o objeto bom e o objeto mau são a mesma pessoa (a mãe), entra na posição depressiva, caracterizada por sentimentos de culpa e o desejo de reparar o dano fantasiado causado por sua agressividade.
Para Klein, conceitos como inveja, culpa, reparação, identificação projetiva e introjeção são centrais na constituição do psiquismo. Sua obra abarca desde a análise de estados psicóticos até o luto, a criatividade, a psicossomática e a psicopatologia da vida cotidiana. Seu livro The Psycho-Analysis of Children (1932) foi uma virada na clínica infantil. Já em Envy and Gratitude (1957), Klein descreve a inveja como um sentimento primitivo dirigido contra o objeto bom — geralmente, o seio materno — que frustra por ser percebido como inesgotável. Essa formulação, radical para a época, foi recebida com entusiasmo e resistência em igual medida.
O trabalho clínico de Melanie Klein foi profundamente inovador. Ao usar o brincar das crianças como via de acesso ao inconsciente — o que hoje chamamos de “play therapy” —, ela mostrou que mesmo crianças pequenas podem ser analisadas, e que, nelas, já operam complexos mecanismos de defesa, como cisão, negação e projeção. Sua técnica se tornou referência e influenciou não apenas a psicanálise infantil, mas também a psicoterapia de adultos, a psiquiatria e o pensamento social.
No entanto, sua trajetória não foi isenta de conflitos. Nos anos 1940 e 50, travou um dos maiores embates teóricos da psicanálise: a chamada “Controversial Discussions” dentro da Sociedade Britânica de Psicanálise. Do outro lado do ringue estava Anna Freud, filha de Sigmund Freud, que criticava Klein por suas interpretações precoces e por teorizar sobre fases anteriores ao complexo de Édipo sem o rigor do pai da psicanálise. A disputa dividiu o campo psicanalítico britânico em três grupos: os freudianos ortodoxos, os kleinianos, e um terceiro grupo “independente”, que tentava conciliar ambos. Essas tensões acabaram por enriquecer a tradição inglesa da psicanálise, que ainda hoje se destaca por sua diversidade teórica.
Mesmo em sua vida pessoal, Melanie Klein foi uma figura cercada por polêmica. Seu relacionamento com a filha Melitta — também psicanalista — foi marcado por acusações públicas. Melitta chegou a denunciar a mãe no meio clínico, questionando suas práticas e sua ética. Já seu filho Hans, cuja análise foi publicada postumamente, morreu jovem, em circunstâncias que alimentaram especulações e fantasias sobre a intensidade das relações familiares dentro de uma casa atravessada por teorias e interpretações.
Apesar das controvérsias — ou talvez por causa delas —, Melanie Klein deixou uma marca indelével na psicanálise internacional. Sua popularidade na América Latina, em especial no Brasil e na Argentina, cresceu exponencialmente a partir dos anos 1950 e teve seu auge nas décadas de 1970 e 80. Parte disso se explica pela tradução e circulação ampla de suas obras, mas também pela influência que seus discípulos (como Hanna Segal e Wilfred Bion) exerceram na formação de gerações de analistas latino-americanos. Num continente marcado por ditaduras, violência simbólica e traumas sociais profundos, a ênfase kleiniana nos conflitos internos, na angústia persecutória e no desejo de reparação encontrou ressonância. Era uma psicanálise que lidava com o trágico — e isso fazia sentido.

Além da clínica e da teoria, Melanie Klein também ganhou os palcos. Sua vida e suas ideias inspiraram a peça Mrs. Klein, escrita por Nicholas Wright e encenada pela primeira vez em 1988, no National Theatre de Londres. O drama foca no luto de Klein pela morte do filho Hans e nos embates com a filha Melitta, explorando os limites entre a vida privada e o pensamento psicanalítico. A peça foi aclamada e teve montagens internacionais, com destaque para as interpretações de Uta Hagen e Clare Higgins. Embora sua história ainda não tenha sido levada ao cinema, documentários e obras literárias frequentemente a mencionam ou se inspiram em suas teorias — de séries sobre maternidade a estudos de cinema e literatura que usam categorias kleinianas para interpretar narrativas contemporâneas.
A peça retrata um único dia na primavera de 1934, focalizando a morte de seu filho Hans, e os intensos embates entre ela e sua filha Melitta. A Sra. Klein ganhou três montagens no Brasil: em 1990, com Ana Lúcia Torre; em 2003, com Nathália Timberg e em 2024, com Ana Beatriz Nogueira como Melanie Klein e Natália Lage como Melitta.
Melanie Klein morreu em Londres em 1960, de câncer, aos 78 anos. Mas seu pensamento, longe de se esgotar, continua a gerar debates intensos e novas leituras. Em tempos em que se discute o papel das emoções, da infância, do trauma e da reparação simbólica, suas ideias se mostram mais atuais do que nunca. Para seus admiradores, ela foi uma visionária que ousou entrar na mente do bebê e escutar aquilo que ninguém ainda ousava nomear. Para seus críticos, uma teórica especulativa, que projetava no brincar infantil mais do que ele podia conter. Mas, como toda figura essencial, Melanie Klein jamais deixou ninguém indiferente.
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