Lições do Titan: A Tragédia do Submersível da OceanGate

Tenho sido muito crítica aos documentários da Netflix porque são em geral plasticamente lindos, mas frequentemente desequilibrados. Em outras palavras, são dossiês de auto promoção e versões de um lado só, ou seja, não um documentário como esperado. A primeira vista, Titan: The OceanGate Disaster parece ser da mesma linha, mas há algo mais profundo nele. Mais ainda porque chega à plataforma quase dois anos depois do acidente que ainda choca o mundo.

Em junho de 2023, todos assistimos, com uma mistura de fascínio mórbido e incredulidade, ao desaparecimento do submersível Titan, que tentava mais uma vez levar turistas bilionários até os destroços do Titanic. O noticiário se transformou em um thriller em tempo real: especulações, teorias, manchetes com contagem regressiva das 96 horas de oxigênio disponíveis, e uma narrativa quase cinematográfica sobre resgate. Mas era tragédia mesmo. O sub implodiu a 3.300 metros de profundidade apenas 90 minutos após o início da descida. Ninguém sobreviveu.

Dois anos depois, o novo documentário da Netflix, Titan: The OceanGate Submersible Disaster, relança essa história não como espetáculo, mas como alerta — e o resultado é tão indignante quanto perturbador. O filme não se concentra no “último mergulho”, nem dramatiza a implosão. Em vez disso, mostra como a tragédia foi fruto de uma década de decisões irresponsáveis, marketing agressivo e um culto à genialidade que deixou a ciência de lado em nome da ambição.

A frase-chave do diretor Mark Monroe é clara: “O Titan poderia ter implodido a qualquer momento”. E é assustador perceber que só não implodiu antes por puro acaso. Foram 80 tentativas de mergulho entre 2021 e 2022, 13 delas até a profundidade do Titanic. O documentário revela gravações, relatórios internos e depoimentos de ex-funcionários que mostram como a OceanGate ignorou alertas técnicos, dispensou certificações independentes, perseguiu funcionários que se opunham e tentou normalizar os estalos do casco como se fossem apenas um “amadurecimento do carbono”. Era o som da morte a caminho.

O documentário também revela, com exclusividade, o áudio da demissão de David Lochridge, então diretor de operações marinhas da OceanGate. Ele havia alertado sobre falhas no casco, e chegou a implorar que Stockton Rush não embarcasse em testes até que melhorias fossem feitas. Foi sumariamente dispensado. O filme mostra ainda o depoimento de Rob McCallum, especialista em exploração submarina, que afirma que a diferença entre sua empresa e a OceanGate era simples: “Nós só anunciamos ao público depois que sabíamos que era possível. Eles anunciaram antes de saber se era seguro.”

Mas Titan: The OceanGate Submersible Disaster também levanta outra questão incômoda: quem será responsabilizado por tudo isso? Com investigações ainda em andamento e processos civis se acumulando nos bastidores, paira no ar a pergunta: alguém será responsabilizado legalmente pelas mortes de Hamish Harding, Shahzada e Suleman Dawood, Paul-Henri Nargeolet e o próprio Stockton Rush?

A Guarda Costeira dos Estados Unidos e o Conselho de Segurança de Transportes do Canadá abriram inquéritos logo após o acidente, já que o submersível foi lançado de um navio canadense e operado por uma empresa americana. O Departamento de Justiça dos EUA também estaria investigando as finanças da OceanGate. Mas, até junho de 2025, nenhum relatório oficial final foi publicado. Monroe afirma que o relatório da Guarda Costeira estava previsto para sair dois a três meses após uma audiência pública, mas a demissão da comandante-chefe, almirante Linda Fagan, em janeiro deste ano, paralisou o processo. “Estamos em compasso de espera”, diz ele.

Tampouco há acusações criminais até agora. Segundo Monroe, vários processos civis estão sendo preparados, aguardando apenas que a investigação oficial aponte quem, de fato, pode ser responsabilizado. “O momento em que disserem ‘esta pessoa ou esta empresa é culpada’ será o gatilho para uma avalanche judicial”, afirma.

Do ponto de vista técnico, o documentário mostra com clareza o motivo da implosão: falha estrutural. O casco de fibra de carbono, material nunca testado em profundidades extremas, começou a dar sinais de fadiga desde os primeiros testes. Inclusive, sensores acústicos — que deveriam captar rachaduras e fissuras em tempo real — foram sistematicamente ignorados. Em um trecho forte do filme, o investigador da Guarda Costeira, Jason Neubauer, afirma que os dados dos sensores, que indicavam deterioração progressiva do casco a cada mergulho, eram o verdadeiro “pistoleiro fumegante” da história: a prova ignorada.

Em depoimento de setembro de 2024, o mergulhador Karl Stanley conta que ouviu estalos ameaçadores no casco durante um mergulho experimental em 2019. Quando questionado se essas informações foram analisadas em grupo ou levadas em conta, Stanley responde: “Não compartilharam nada comigo”. Para Monroe, o mais chocante é que a OceanGate promovia esse sistema de monitoramento como revolucionário — mas provavelmente nunca sequer analisou os dados com seriedade.

O que torna tudo ainda mais doloroso é o som captado 16 minutos após a perda de comunicação com o Titan. Um ruído gigantesco registrado por dispositivos de escuta subaquática da Marinha dos EUA, a quase 900 milhas do local da implosão. “A ciência sabe como o som se propaga na água”, diz Monroe. “Sabemos que esse ruído é compatível com uma implosão, e incluí-lo no filme foi uma forma de dar ao público uma sensação de encerramento, de saber o que de fato aconteceu.”

Stockton Rush, por sua vez, aparece no filme como um empreendedor visionário obcecado em contornar regras — alguém que desprezava certificações, rejeitava alertas e promovia uma visão quase messiânica de si mesmo. “Ele sentia a pressão de cumprir o que prometera ao mundo”, diz Monroe. “E quando os anos passam e a tecnologia não responde como ele esperava, a pressão se transforma em obstinação.” Ele se via como uma espécie de Elon Musk das profundezas, mas levou a metáfora do “mover-se rápido e quebrar coisas” ao limite da imprudência — com vidas humanas no processo.

O filme também dá voz a Sydney Nargeolet, filha de Paul-Henri Nargeolet, um dos mortos na tragédia. Seu depoimento traz o peso emocional que a tragédia impõe às famílias, algo essencial para que o documentário não se limite à dimensão técnica ou ao escândalo corporativo. “Desde o início, sabíamos que não podíamos fazer esse filme sem alguém conectado às vítimas”, afirma Monroe.

Dois anos depois da tragédia, Titan: The OceanGate Submersible Disaster é mais do que um documentário — é um dossiê sobre arrogância, omissão e a fragilidade de estruturas aparentemente sólidas. A implosão foi repentina. O colapso moral, não.


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