Em 1925, Virginia Woolf lançou um romance cuja trama poderia parecer mínima: uma mulher prepara uma festa. Cem anos depois, Mrs. Dalloway permanece como uma das mais revolucionárias e emocionalmente penetrantes obras da literatura moderna. No centenário de sua publicação, a relevância do livro não apenas resiste ao tempo como se amplia, ganhando ressonância em uma época em que a introspecção se tornou uma segunda natureza. Como escreveu George Monaghan em seu ensaio recente para a New Statesman, “todos somos Mrs. Dalloway agora” — não apenas porque adotamos o fluxo de consciência como forma de narrativa pessoal, mas porque, como Clarissa, somos atravessados por fragmentos de passado, desejo, luto e medo num presente cada vez mais instável.

A história de Mrs. Dalloway se passa ao longo de um único dia em Londres, em junho de 1923. Clarissa Dalloway, uma mulher de classe alta, caminha pela cidade comprando flores para sua festa noturna. Durante o percurso, é invadida por lembranças de sua juventude, do romance com Peter Walsh, da amizade íntima com Sally Seton e de escolhas que a levaram a uma vida segura, porém emocionalmente repleta de dúvidas. Paralelamente, conhecemos Septimus Warren Smith, um jovem veterano da Primeira Guerra Mundial, profundamente traumatizado, que vaga por Londres à beira do colapso, ouvindo vozes e experimentando visões poéticas e aterradoras. A ligação entre eles é simbólica: Septimus representa a morte que ronda Clarissa, a dor que ela pressente e contorna, a fragilidade que a ronda, ainda que a sociedade insista em mascarar.
Woolf escreveu Mrs. Dalloway após dois colapsos nervosos e uma tentativa de suicídio. A criação do romance coincidiu com um momento de confiança artística, mas também de intensa vulnerabilidade. Como ela mesma registrou em seu diário, queria escrever “vida e morte, sanidade e loucura” lado a lado, separadas apenas por uma porta, como são Clarissa e Septimus. Ela acreditava que a literatura deveria mostrar não o exterior das coisas — como faziam os autores eduardianos que criticava — mas “a alma, o espírito, o que acontece dentro”, como um “processo de escavação”, um “túnel” que atravessa as aparências.
É nesse sentido que o romance se tornou, também, uma exploração do tempo psicológico. Clarissa Dalloway reflete sobre o que perdeu: o amor por Sally, a possibilidade de uma vida mais autêntica, a juventude. Não é uma heroína trágica em termos clássicos, mas sua melancolia é constante. Já Septimus, mais do que qualquer outro personagem na ficção modernista, encarna os destroços humanos da guerra e do fracasso médico. Ele vê o mundo com uma sensibilidade extrema, mas é incapaz de viver nele. Sua morte, ao saltar de uma janela, é uma crítica feroz à psiquiatria de seu tempo e uma denúncia do abismo entre sofrimento interno e tratamento social.

Clarissa, ao saber da morte de um desconhecido, tem uma intuição súbita, quase mística, de que essa morte lhe pertence. “Ela sentia-se contente que ele o tivesse feito; que o tivesse lançado fora”, pensa, num dos trechos mais perturbadores e líricos do romance. Woolf nunca escreveu diretamente sobre suicídio como um ideal, mas compreendia a pulsão de morte como algo que ronda até os momentos de festa, até os salões iluminados.
A força estética e emocional de Mrs. Dalloway reverberou por gerações, e sua influência se expandiu através de outras obras igualmente marcantes. Em 1998, Michael Cunningham publicou o romance As Horas, vencedor do Pulitzer, que entrelaça três histórias: a de Virginia Woolf escrevendo Mrs. Dalloway em 1923; a de Laura Brown, uma dona de casa dos anos 1950 que lê o livro enquanto planeja seu suicídio; e a de Clarissa Vaughan, uma mulher contemporânea em Nova York que cuida de um amigo com AIDS e planeja uma festa em sua homenagem. O livro virou filme em 2002, estrelado por Nicole Kidman (em performance premiada com o Oscar), Julianne Moore e Meryl Streep. As Horas não é apenas uma homenagem a Woolf, mas uma tradução moderna de suas obsessões: tempo, perda, linguagem, a sensação de não estar vivendo plenamente.

O próprio Mrs. Dalloway também foi adaptado para o cinema em 1997, com Vanessa Redgrave no papel-título. O filme preserva a elegância da prosa de Woolf e captura com delicadeza os silêncios, olhares e cortes temporais que marcam o texto original. Redgrave encarna Clarissa com uma ambiguidade comovente — uma mulher que vive em sociedade, mas sente o peso das ausências como ninguém.
O que torna Mrs. Dalloway eterno não é apenas sua beleza formal ou sua importância histórica. É o fato de que Woolf conseguiu capturar, com precisão quase clínica, as fissuras da psique moderna. Ela escreveu num momento em que a física quântica começava a mostrar que nada é fixo, e sua literatura compartilha essa instabilidade. Como diz Monaghan, o projeto da introspecção que Woolf inaugurou talvez tenha sido, também, uma armadilha: quanto mais olhamos para dentro, mais nos fragmentamos. A modernidade prometia encontrar luz cavando a escuridão — mas talvez, como Clarissa percebe ao final do romance, o centro místico da alma “escapa”, e a intimidade mais plena termina sempre num espaço solitário.

Cem anos depois, Mrs. Dalloway segue sendo um lembrete poderoso de que todos temos “rachaduras — e é por onde entra a luz”, como já se disse. Mas também de que essas rachaduras podem nos estilhaçar. Clarissa sobrevive, dança, sorri em sua festa. Mas o silêncio de Septimus, o abismo entre eles, permanece como um eco. E o que Woolf nos deu não foi uma solução, mas um mapa emocional. Um convite a ouvir o que a cidade não diz. A escutar os pensamentos antes da fala. A viver, mesmo com medo. Porque, no fim, “a vida é isto — um instante, um momento de junho — Londres — e tudo está aceso”.
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