Em 2020, a Netflix lançou uma refilmagem do clássico de Alfred Hitchcock, Rebecca, Uma Mulher Inesquecível, com Lily James no papel que foi de Joan Fontaine e Armie Hammer substituindo Laurence Olivier. Não fez sucesso e relembrei que há muita polêmica em torno do livro antes do filme. Algo que “voltou” à memória agora. Isso mesmo, na realidade, Rebecca é um dos plágios mais escandalosos da história da literatura e uma cópia de um best-seller brasileiro. O que há de inesquecível em toda essa história?

Em 1934, um romance psicológico que fez sucesso no Brasil
Em 1934, a escritora brasileira Carolina Nabuco publicou A Sucessora, um romance psicológico que explora o drama de uma jovem de origem modesta, Marina, que se casa com um homem mais velho e rico, Roberto Steen, e vai morar em uma mansão marcada pela presença fantasmagórica da falecida primeira esposa, Alice. A trama gira em torno do desconforto de Marina diante da comparação constante com a antiga senhora da casa, cuja memória é mantida viva por retratos, objetos e principalmente por Juliana, a governanta fiel à falecida. O livro desenvolve uma tensão crescente entre a jovem protagonista, sufocada por seu novo papel social, e os ecos de uma mulher que continua dominando o espaço doméstico mesmo após a morte.
Diante do grande sucesso, com muita surpresa, apenas quatro anos depois, em 1938, a escritora britânica Daphne du Maurier publicou Rebecca, um best-seller internacional que partia de uma premissa surpreendentemente semelhante. A narradora — cujo nome nunca é revelado — é também uma jovem de classe baixa que se casa com um viúvo rico, Maxim de Winter, e se muda para a mansão Manderley, na Cornualha. Lá, ela é atormentada pela figura da falecida esposa, Rebecca, cuja sombra domina os corredores, os empregados e até o coração do marido. A governanta, Mrs. Danvers, é a principal guardiã dessa memória e se dedica a fazer a nova esposa sentir-se inferior e inadequada. A narrativa, gótica e atmosférica, aprofunda-se em mistério e suspense até culminar em uma revelação dramática sobre a morte de Rebecca.
As semelhanças entre os dois livros são numerosas. Ambos giram em torno de uma jovem insegura, deslocada num ambiente aristocrático, vivendo sob a sombra opressora de uma mulher morta que ainda domina afetivamente a casa e as pessoas ao redor. Tanto Marina quanto a narradora de Rebecca são emocionalmente imaturas, vulneráveis à manipulação e constantemente comparadas com a esposa anterior — mais bela, mais elegante, mais sofisticada. Nas duas obras, a figura da governanta desempenha papel crucial: Juliana e Mrs. Danvers são fiéis à falecida, ressentidas com a nova esposa, e funcionam como guardiãs da “memória institucional” da casa. O clima sufocante das mansões — seja a brasileira, com seus retratos e silêncios, seja a inglesa, envolta em névoa e passado — serve de metáfora para o aprisionamento psicológico dessas protagonistas.
Apesar dessas convergências notáveis, há diferenças relevantes. A Sucessora tem uma abordagem mais psicológica e social, explorando os códigos da elite brasileira dos anos 1930, com foco nos papéis femininos e nos conflitos familiares. Já Rebecca adota o tom de um suspense gótico, com elementos de mistério e crime. A narrativa de Nabuco é em terceira pessoa, permitindo certa distância entre a protagonista e o leitor; du Maurier escolhe o ponto de vista em primeira pessoa, o que confere maior subjetividade e imersão emocional à história. O desfecho também difere: enquanto Marina, em A Sucessora, atravessa o processo de autoafirmação diante de uma conspiração velada e da ameaça de apagamento, Rebecca culmina na revelação de que Maxim matou a esposa anterior — e a destruição final de Manderley sugere uma catarse trágica.

A acusação de plágio surgiu logo após o sucesso internacional de Rebecca. Carolina Nabuco afirmou em suas memórias que havia enviado uma tradução de A Sucessora para editoras norte-americanas e inglesas, inclusive para a mesma agência literária que viria a representar du Maurier. Quando as semelhanças entre as obras foram notadas, o jornal The New York Times Book Review publicou, em 1941, uma resenha destacando os paralelos e questionando a originalidade de Rebecca. A própria Nabuco revelou que, quando o filme de Alfred Hitchcock baseado no romance foi lançado no Brasil, a United Artists tentou convencê-la a assinar um documento afirmando que as coincidências entre os livros eram apenas isso — coincidências. Ela recusou.
Daphne du Maurier negou qualquer conhecimento prévio da obra de Nabuco e respondeu ao New York Times com uma carta, na qual se defendeu dizendo que já havia sido acusada por outras autoras obscuras de “roubar ideias” e que seu romance era produto de sua imaginação. Vale lembrar que Rebecca também tem afinidades temáticas com Jane Eyre, de Charlotte Brontë, o que pode reforçar a ideia de que certos arquétipos femininos — a mulher apagada, a esposa anterior, a casa como símbolo do inconsciente — são recorrentes na literatura ocidental.
O caso, no entanto, nunca foi levado aos tribunais. Carolina Nabuco optou por não processar du Maurier. Críticos e leitores continuam divididos: para alguns, trata-se de um caso claro de apropriação de enredo; para outros, as semelhanças são superficiais e podem ser atribuídas à coincidência ou ao uso de elementos comuns da tradição literária. Ainda hoje, a polêmica permanece viva, especialmente entre estudiosos da literatura brasileira, que veem em A Sucessora não apenas uma precursora esquecida, mas também um exemplo da invisibilidade histórica de vozes femininas do sul global no cânone literário internacional.

O debate sobre o suposto plágio entre Rebecca e A Sucessora nunca foi resolvido judicialmente, mas está longe de ser mera fofoca. É uma disputa real, documentada, que coloca em cena temas como autoria, colonialismo cultural e os limites da originalidade na literatura. Mesmo que jamais se prove um plágio intencional, o fato de Carolina Nabuco ter escrito uma história tão próxima da de Daphne du Maurier, quatro anos antes, permanece como um dado literário incontornável.
Um clássico eterno sob as lentes de Hitchcock
Deve ter sido doloroso para Nabuco quando o sucesso de Rebecca de Daphne du Maurier colocou o livro como “um dos mais notáveis da literatura do século 20” — tanto pelo impacto popular quanto pelo legado cultural, que atravessou livros, cinema, teatro e televisão.
Lançado em 1938 pela editora Victor Gollancz, Rebecca rapidamente se tornou um best-seller no Reino Unido e nos Estados Unidos. O livro ficou mais de um ano na lista dos mais vendidos do New York Times, alcançando milhões de leitores. A crítica da época ficou dividida: enquanto muitos o chamavam de “romance gótico moderno” ou de “mistério psicológico magistral”, alguns o consideraram “literatura para mulheres” — uma classificação enviesada, típica do período, que nunca impediu o livro de conquistar um público massivo e duradouro.
A frase de abertura — “Last night I dreamt I went to Manderley again” — é considerada uma das mais icônicas da literatura em língua inglesa. A atmosfera sombria, a tensão psicológica crescente e a figura ausente e ao mesmo tempo onipresente de Rebecca tornaram o romance um estudo poderoso sobre ciúme, identidade, culpa e classe social.

Daphne du Maurier, que já vinha de relativo sucesso com outros romances (Jamaica Inn, The Loving Spirit), foi catapultada a status de celebridade literária, mas também passou a lidar com as pressões da fama e das constantes comparações com autores como Charlotte Brontë — a quem muitos críticos associaram Rebecca como um “Jane Eyre moderno“.
O filme de Hitchcock (1940): consagração internacional
O sucesso do livro foi consolidado com a versão teatral e, depois, com a adaptação cinematográfica dirigida por Alfred Hitchcock, produzida por David O. Selznick e lançada em 1940. Com Laurence Olivier como Maxim de Winter, Joan Fontaine como a narradora e Judith Anderson no papel inesquecível da governanta Mrs. Danvers, o filme foi um triunfo.
A produção ganhou o Oscar de Melhor Filme em 1941 — o único filme de Hitchcock a receber esse prêmio. Também venceu o Oscar de Melhor Fotografia e foi indicado em outras nove categorias, incluindo Melhor Diretor. A versão de Hitchcock modificou algumas partes do enredo (por exigências do Código Hays, Maxim não poderia ser um assassino) mas manteve o clima sinistro e o foco na personagem sem nome. A atuação de Judith Anderson como Mrs. Danvers marcou profundamente o imaginário da época.
Essa adaptação levou o livro a um público ainda mais amplo, garantindo sua presença duradoura na cultura popular. Além da versão de Hitchcock, Rebecca foi adaptado para o rádio (com Orson Welles), televisão, teatro e até ópera. Como falei, a última versão foi a de 2020, com Lily James, Armie Hammer e Kristin Scott Thomas, com críticas mistas e sem o mesmo impacto da versão clássica.
Ao longo das décadas, Rebecca influenciou dezenas de autores, roteiristas e cineastas. Seu enredo, centrado no medo da substituição e no peso da memória de outra mulher, pode ser rastreado em obras que vão de Jane Eyre (seu antecessor direto) a Gone Girl, The Wife, Gaslight e tantas outras histórias que exploram a desestabilização psicológica da protagonista feminina.

Nos últimos anos, o romance tem sido amplamente reinterpretado à luz de questões de gênero, identidade e trauma. Muitas leituras feministas veem em Rebecca um estudo sobre o controle masculino, a rivalidade simbólica entre mulheres e a repressão de uma sexualidade não convencional — com destaque para a leitura queer da personagem Mrs. Danvers.
O livro também é lembrado por seu uso sofisticado da ausência: Rebecca nunca aparece em cena, mas sua presença domina tudo. A narradora, que sequer tem nome, representa a mulher apagada, sem identidade própria, tentando ocupar um espaço que não foi feito para ela.
Assim, Rebecca não foi apenas um sucesso editorial — foi um fenômeno cultural que ultrapassou fronteiras e décadas. Sua narrativa envolvente, personagens complexas e atmosfera única garantiram um lugar permanente no cânone literário e cinematográfico. Ainda hoje, é reeditado constantemente, traduzido para diversas línguas, estudado em cursos acadêmicos e reinterpretado em diferentes mídias. A sombra de Rebecca, assim como no romance, continua a pairar — mas não como ameaça, e sim como prova do poder duradouro de uma boa história.
A versão original discute a sociedade carioca
O romance A Sucessora tem uma narrativa que acompanha a crescente angústia de Marina, a jovem insegura que diante da figura de sua antecessora, Alice, que parece perseguir sua nova vida de formas sutis e perturbadoras. Marina sente-se como uma “sucessora” de Alice, destinada a falhar em seu papel, seja na relação com Roberto, seja no ambiente repleto de mistérios da antiga esposa.
O estilo de Carolina Nabuco em A Sucessora é marcado por uma narrativa introspectiva, cheia de nuances emocionais e aborda temas como Insegurança feminina e a luta pela identidade em um casamento marcado por expectativas externas, assim como a pressão social sobre a mulher para corresponder a um modelo idealizado e o passado como fantasma presente, evidenciado pela constante lembrança e comparação com Alice. Dessa forma, o ambiente da casa grande como um espaço quase claustrofóbico, simboliza a prisão psicológica da protagonista.

Publicada em 1934, A Sucessora faz parte do modernismo brasileiro, mas com um olhar menos experimental que outros autores da época. A obra ganhou grande sucesso no Brasil e foi adaptada para a televisão, o que ajudou a popularizá-la.
A novela de 1978 foi produzida pela TV Globo, escrita por Manoel Carlos, com Susana Vieira como Marina, Rubens de Falco como Roberto, e Nathalia Timberg como Juliana. Estranhamente, embora tenha sido sucesso e regravada na América Latina (há versão colombiana, argentina e peruana), a Globo mesmo nunca regravou a obra.
A Sucessora transcende o simples romance e mergulha profundamente na complexidade emocional, expondo as angústias da luta para encontrar sua própria identidade em meio às sombras do passado e às expectativas sufocantes da sociedade patriarcal. Um clássico da literatura brasileira que dialoga com temas universais de sofrimento, autoafirmação e libertação interior. Não seria hora de revisitar? Apenas um pensamento…
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