Às vezes, um filme marca a história não só pelo impacto imediato, mas pela permanência silenciosa que tem nas nossas ideias de liberdade, autoridade, loucura e resistência. Lançado há exatos 50 anos, Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cuckoo’s Nest) continua sendo um desses raros filmes que sobrevivem à passagem do tempo não como relíquia, mas como alerta. Estrelado por Jack Nicholson e dirigido por Miloš Forman, o longa venceu os chamados “Big Five” do Oscar — Melhor Filme, Direção, Ator, Atriz e Roteiro Adaptado — e tornou-se um clássico universal. Mas o caminho até ele foi longo, tortuoso e repleto de embates ideológicos, artísticos e familiares.

A origem da história remonta ao início dos anos 1960, quando o então jovem Ken Kesey trabalhava no turno da noite no Hospital de Veteranos de Menlo Park, na Califórnia. Lá, muitas vezes sob efeito de drogas alucinógenas que ele mesmo se voluntariou para testar em nome da ciência, Kesey conversava com os pacientes e percebia algo fundamental: eles não eram “loucos” nos termos clínicos, mas sim marginalizados por uma sociedade que rejeitava qualquer comportamento fora da norma. Dessa experiência nasceu o romance One Flew Over the Cuckoo’s Nest, publicado em 1962 sob a tutela do editor Malcolm Cowley.
A história se passa em um hospital psiquiátrico, onde o carismático e rebelde Randle McMurphy é internado após fingir insanidade para evitar a prisão. No hospital, ele entra em conflito com a rígida enfermeira Ratched, símbolo do autoritarismo institucional. O livro foi um sucesso imediato e, no ano seguinte, ganhou uma elogiada adaptação para o teatro por Dale Wasserman.

O título, aliás, carrega um simbolismo profundo. A expressão “One flew over the cuckoo’s nest” vem de uma cantiga de ninar citada no romance: “One flew east, one flew west, and one flew over the cuckoo’s nest.” Em inglês, “cuckoo” é gíria para “louco”, e o “ninho” representa metaforicamente a instituição psiquiátrica. Voar sobre esse ninho é, portanto, uma metáfora para a transcendência, a fuga — física e espiritual — da opressão. No livro, a frase é dita em meio aos delírios do Chefe Bromden, o narrador indígena, que enxerga o hospital como parte de uma engrenagem que tritura a individualidade. Para Kesey, a “loucura” estava menos nos internos e mais nas estruturas que exigem obediência cega.
Apesar do sucesso nos palcos, Kirk Douglas — que comprou os direitos da obra ainda nos anos 60 e protagonizou a peça na Broadway — passou mais de uma década tentando transformar o projeto em filme. Seu grande sonho era interpretar McMurphy no cinema, mas os estúdios recusavam financiar um projeto que consideravam “difícil” ou “incômodo”. Somente em 1971, após muita insistência e batalhas judiciais pelos direitos, seu filho Michael Douglas convenceu o pai a deixá-lo assumir a produção. Michael era jovem, engajado politicamente, e via na história de McMurphy — um homem comum enfrentando o sistema — o reflexo das lutas sociais da época. Ele levou o projeto para Saul Zaentz, da gravadora Fantasy Records, e juntos montaram a versão que seria finalmente filmada.

O diretor escolhido foi Miloš Forman, o mesmo que Kirk Douglas havia tentado contratar anos antes em Praga, antes de o cineasta tcheco ser silenciado pela invasão soviética que esmagou a Primavera de Praga. Forman, exilado nos EUA, leu o livro e se reconheceu nele: “A história não era apenas literatura para mim, era a minha vida. O Partido Comunista foi a minha enfermeira Ratched”. Mesmo enfrentando uma crise de saúde mental e isolamento em Nova York, ele mergulhou no projeto com paixão — e um detalhismo incomum.
Forman dispensou Kirk Douglas para o papel principal, alegando que ele estava velho demais. Isso abalou a relação entre pai e filho por anos. Gene Hackman, Marlon Brando, e Burt Reynolds foram considerados até que Jack Nicholson aceitou o papel e mergulhou no personagem com intensidade lendária. Visitou hospitais, acompanhou sessões de eletrochoque e se integrou ao universo da instituição.

As filmagens começaram em janeiro de 1975, dentro do próprio hospital psiquiátrico de Oregon onde a história se passa. O diretor do hospital, Dean Brooks, participou como ator e envolveu pacientes reais na produção — muitos dos quais eram criminosos insanos. A sensação de autenticidade é palpável. As sessões de terapia coletiva foram filmadas com três câmeras simultâneas, para capturar reações reais. O clima nos bastidores, porém, era tenso. O fotógrafo Haskell Wexler foi demitido por diferenças criativas (ou políticas), e Nicholson passou semanas sem dirigir a palavra a Forman.
Na Broadway, anos depois, assisti Gary Sinise no papel de McMurphy — e nunca esqueci. O texto continua potente, a estrutura teatral evidencia o embate entre indivíduo e sistema com ainda mais força. Sinise trazia um tom mais cínico, ácido, diferente do calor anárquico de Nicholson, mas igualmente devastador. É prova de como a história permanece viva em diferentes formas e corpos.


O filme estreou em novembro de 1975 e rapidamente se tornou fenômeno. Foi o segundo maior sucesso de bilheteria do ano nos EUA e bateu recordes internacionais. Conquistou os cinco Oscars principais e alçou Nicholson e Louise Fletcher — extraordinária como a gélida enfermeira Ratched — ao panteão da história do cinema. Ainda hoje, é um dos três únicos filmes a ganhar os “Big Five”, ao lado de Aconteceu Naquela Noite e O Silêncio dos Inocentes.
Ken Kesey, por sua vez, nunca assistiu ao filme — ou pelo menos dizia que não. Alegava que o roteiro o traiu por não narrar a história pela perspectiva do Chefe Bromden e detestava a escolha de Nicholson (ele preferia Gene Hackman). Mesmo assim, sua esposa declarou anos depois que ele estava feliz com o impacto que a obra teve.

Cinquenta anos depois, Um Estranho no Ninho continua desafiando o espectador a refletir sobre o que é normal, quem define as regras e qual é o preço de quebrá-las. McMurphy, como o “um” que voou sobre o ninho, nos mostra que, às vezes, a verdadeira sanidade está em não se conformar.
Descubra mais sobre
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
